Folha de S.Paulo

Médico negro desafia a própria mãe e vira raridade na periferia

Filho de dona de casa, rapaz foi ajudante em fábrica, driblou desconfian­ças e hoje atende no extremo leste de São Paulo

- Ricardo Kotscho

Diálogo à porta do consultóri­o do médico de família Roberto Jaguaribe Trindade, na UBS (Unidade Básica de Saúde) de Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade de São Paulo.

— Você é o médico? — Sim, sou eu. Pode entrar. — Não vou entrar. Não quero ser atendida por um preto.

Dr. Roberto chamou o próximo paciente e continuou seu trabalho normalment­e, como se nada tivesse acontecido.

Ali ele atende a 36 pacientes por dia. Nunca, antes, alguém havia se recusado a ser atendido pelo médico negro, ainda uma raridade na sua profissão. A paciente andou apressada e desaparece­u da UBS, onde nunca mais foi vista. Roberto nem guardou o nome dela.

O crime de racismo foi em 2014, mas ficou gravado na memória dele como ontem.

Desde o início da carreira, este paulistano de 39 anos, solteiro, formado médico em Cuba, com especializ­ação em pediatria, já está acostumado a ser confundido pelos pacientes com enfermeiro­s e funcionári­os do posto de saúde.

Ele até entende. Médicos negros ainda não são comuns e causam estranheza aos brancos de um país onde o racismo sobrevive, 130 anos após a promulgaçã­o da Lei Áurea.

Sobre o Dia da Consciênci­a Negra, a ser celebrado nesta terça-feira (20), diz o médico: “Defender nossa identidade é questão de sobrevivên­cia e deve ser praticado diariament­e, já que nossa sociedade discrimina e adoece quem é negro”.

A melhor forma de Roberto batalhar em defesa da causa dos negros é a sua própria história de vida e o seu trabalho, que podem servir de exemplo e estímulo a outros jovens como ele, que sonham em ser médicos mesmo sendo de famílias pobres.

Filho de uma dona de casa e de um sargento do Exército que se separaram quando ele tinha cinco anos, Roberto passou dificuldad­es na infância. “Ele não ajudava em quase nada, mas sempre encontrou uma forma de se fazer presente”, recorda, sobre o pai.

A mãe foi trabalhar como diarista para criar os dois filhos. Caçula, Roberto sentia na pele o significad­o de ser negro.

Nem a mãe, dona Neuza, acreditou quando lhe disse que queria ser médico, assim que foi para a escola. Ela deu risada e decretou: “Isso não é para você, é só para gente rica. Nós não temos condições”. A mesma coisa ele ouviria de parentes, colegas e professore­s.

A família já tinha se mudado da Vila Formosa, onde nasceu, para a distante Cidade Tiradentes. Mora lá até hoje. É um caso raro de médico da rede pública que vive no mesmo lugar onde trabalha, o que o aproxima de seus pacientes.

Ainda na primeira infância, frequentou clínicas e hospitais para tratar de um sopro no coração. E começou a gostar do ambiente, com pessoas de roupas brancas impecáveis cuidando dos doentes.

Quando completou 15 anos, dona Neuza falou para o filho parar com isso e o mandou arrumar um emprego para ajudar nas despesas. Foi trabalhar como ajudante de serviços gerais numa fábrica de lustres em Sapopemba. Lá se matriculou no ensino médio para ficar mais perto do serviço.

Pegava o ônibus às 5h e viajava duas horas até a fábrica. Depois, rodava mais uma hora e meia para chegar à escola. Voltava para casa à meia-noite e meia. “Só conseguia abrir um livro e fazer as lições nos finais de semana, quando o resto da turma ia se divertir.”

Quem via seu esforço lhe indagava: “Desse jeito, como você vai passar no vestibular, ainda mais de medicina?”

A sorte o ajudou pela primeira vez ao descobrir um cursinho pré-vestibular, o Educafro, criado por padres franciscan­os para estudantes carentes com o auxílio de professore­s voluntário­s.

O próprio Roberto dava aulas de biologia no mesmo cursinho. Na primeira tentativa, não foi aprovado na Fuvest.

Antes de se inscrever novamente, outra sorte: o governo cubano ofereceu duas bolsas de estudos aos alunos do Educafro. Fizeram um exame, e ele foi um dos aprovados.

Em março de 2000, junto com outros 60 brasileiro­s bolsistas, embarcou para Havana, pagando a passagem com o fundo de garantia que recebeu ao sair da fábrica de lustres. Dali em diante, não gastou mais nada. Tinha faculdade, material, uniforme, casa, comida e roupa lavada.

Depois que terminou o curso e voltou ao Brasil, há nove anos, trabalhand­o como médico, já notava mais negros na profissão —o que atribui a políticas como cotas e Prouni. “Mas ainda somos poucos.”

Alunas do quinto ano da Faculdade de Medicina Santa Marcelina, que estagiam com ele na UBS, duas jovens sentadas sobre a maca acompanham a entrevista.

Quando ele saiu do consultóri­o para comprar água, Gabriela Balieiro e Juliana Balhester começaram a falar.

“Acho bonito o jeito como ele lida com as pessoas. Muito carinhoso com todos, sabe ouvir. Muitas vezes, ele é o remédio dos pacientes. Só de conversar com ele, já se sentem melhores”, afirma Gabriela.

Médico de família do SUS, com dedicação exclusiva, ganha R$ 14 mil por mês para trabalhar 10 horas por dia, de segunda a quinta. Além das consultas no ambulatóri­o, faz oito visitas semanais a pacientes acamados. Roberto também é usuário do SUS. “Não tenho plano de saúde particular. Como vou acreditar numa coisa que não sei como funciona?”

A última paciente do dia é Lorena, de 1 ano e 9 meses, carregada nos braços da avó, a cozinheira Rosivalda dos Santos. “Ela está ressecada, doutor, não vai no banheiro de jeito nenhum.” Roberto examina a caderneta com anotações sobre a saúde do bebê e receita um supositóri­o.

Dona Rosivalda nunca levou Lorena a outro médico. “Os outros também são bons, mas ninguém é como o doutor Roberto. Ele já aprendeu a lidar com ela [Lorena].”

Os médicos da UBS têm apenas 15 minutos para cada consulta, mas ele controla o tempo para ouvir as queixas dos pacientes. “Nossa vida é uma permanente militância”, diz, ao se despedir. Este médico não quer saber de outra vida. Doutor Roberto Jaguaribe Trindade é um brasileiro feliz.

“Isso [medicina] não é para você, é só para gente rica Neuza, mãe de Roberto, quando ele era criança

Defender nossa identidade é questão de sobrevivên­cia e deve ser praticado diariament­e Roberto Jaguaribe Trindade, 39 Médico de família

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Jorge Araujo/Folhapress O médico Roberto Jaguaribe Trindade, na UBS de Cidade Tiradentes

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