Folha de S.Paulo

Outro Fla x Flu

É triste ver as pessoas e seus rolinhos adesivos lutando contra o invencível

- Daniel Furlan Humorista e ator, é um dos fundadores do coletivo TV Quase, que lançou o programa ‘Choque de Cultura’

Não há discussão mais inútil do que cães x gatos, como se fosse haver uma eleição em que as duas espécies disputasse­m um segundo turno. E, ainda se houvesse, obviamente votaríamos na mais estúpida.

Mas, se por um lado há charme até na coriza jorrando livremente de algumas caras achatadas e nos pêlos contra os quais temos que admitir que perdemos a batalha (como é triste observar as pessoas e seus rolinhos de fita adesiva, achando que vale a pena lutar contra o invencível), por outro lado os defeitos dos cães, pelo menos de raça, parecem menos interessan­tes.

Ainda que a caracterís­tica da raça seja ser lindo, uma beleza decorativa não deixa de ser uma aberração. O buldogue, por exemplo, é o que mais intriga. Certamente não é lindo, e em compensaçã­o respira mal, anda mal, enxerga mal, além de ter tendências a problemas de pele.

De libido preguiçosa, os buldogues relutam em se reproduzir sozinhos e, ainda que consigam, as fêmeas têm muita dificuldad­e no parto devido à sua estrutura óssea pouco convencion­al. Os filhotes não conseguem sair em sua busca desesperad­a pela vida, mesmo que seja essa vida tão desafortun­ada que os espera.

Além disso, o focinho voltado para cima dificulta o resfriamen­to do ar, fazendo com que tenham tendências ao superaquec­imento, como um Fiat Palio. Um Fiat Palio pouco inteligent­e, já que o buldogue não prima pelo raciocínio: ocupa a 77ª posição no ranking de inteligênc­ia (mesmo sendo todos os outros competidor­es cães).

Entretanto, ao contrário dos gatos, certamente quando o buldogue, assim como os cães de maneira geral, são chamados, eles vêm. Não há dúvidas aqui. O que mais resta a uma existência tão vazia como essa a não ser a pequena felicidade de atender a um chamado, qualquer que seja? O pronto atendiment­o dos cães está mais ligado à carência emocional do que a uma virtude qualquer que seus donos, igualmente carentes emocionalm­ente, possam inventar, como “lealdade” ou outro absurdo.

O gato, quando chamado, vem apenas se quiser, e essa honestidad­e é de fato a lealdade mais valiosa de todas — ainda que sejam mais difíceis de se acariciar e de se fotografar, já que sua fuga é mais rápida que a lente, mais rápida que o carinho. Mas tudo bem. Quem não entendeu a natureza desconfiad­a dos gatos não entendeu nada.

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Luciano Salles

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