Folha de S.Paulo

Perspectiv­as e possibilid­ades

Reposição de médicos exige estratégia de longo prazo

- José Gomes Temporão e Francisco Campos Ex-ministro da Saúde (2007-2010, governo Lula) e médico sanitarist­a Professor da Faculdade de Medicina da Universida­de Federal de Minas Gerais

O processo de estruturaç­ão do SUS desde seus primórdios se defrontou com a questão da má distribuiç­ão dos médicos no país. Um famoso sanitarist­a dos anos 70, Carlos Gentile de Melo, já apontava para a coincidênc­ia entre a distribuiç­ão de médicos e a existência de agência bancária no local. Ou seja, os médicos vão aonde existem recursos, o que não é de modo algum demérito, apenas um fato. Dispor de médicos nas regiões mais pobres e remotas em caráter permanente é um grande desafio.

Faltam médicos em áreas da ilha de Manhattan, na província de Ontário, em diversas partes da Europa, na África e no sudeste da Ásia. Muitos países utilizam o recrutamen­to especial para regiões pouco atrativas, permitindo que profission­ais formados em outros países exerçam a medicina em certas áreas. O exemplo mais claro é o “Moratorium” australian­o, que recruta médicos da Índia, Paquistão e de outros países.

Várias propostas têm sido implementa­das para superar esse problema, desde a criação de incentivos financeiro­s e investimen­to em infraestru­tura até a garantia de um plano de carreira específico.

No Brasil, o SUS colocou nas mãos dos municípios a responsabi­lidade pelos serviços básicos de saúde. É comum que essa realidade crie situações de disputa desses profission­ais com propostas de salários e condições de trabalho impossívei­s de serem honradas, prejudican­do a criação de vínculos entre médicos e a população, um dos pré-requisitos de uma atenção básica resolutiva.

Por outro lado, não há dúvida de que milhões de brasileiro­s só passaram a contar com assistênci­a médica regular após a presença do Mais Médicos e dos médicos cubanos —e, ao contrário do que alguns afirmam, eles são profission­ais qualificad­os para o exercício da clínica na atenção básica. Com a iniciativa tomada pelo governo cubano de denunciar o acordo com o governo brasileiro, cerca de 8.000 médicos deixarão o país nas próximas semanas.

As medidas emergencia­is anunciadas pelo governo para repor esses profission­ais não surtirão efeito a curto prazo, o que poderá criar grave situação, deixando nossos compatriot­as desassisti­dos.

Enfim, como no tempo de Carlos Gentile o problema continua sem uma solução adequada e não existem soluções mágicas como a defendida nesta Folha pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, no último domingo (18). Enfrentar essa complexa questão exige a construção de uma estratégia de médio e longo prazos que contemple, pelo menos:

1) a criação do Serviço Civil Obrigatóri­o para graduados em medicina, odontologi­a e enfermagem em universida­des públicas ou cuja formação tenha sido custeada por recursos públicos. Isso exigirá mecanismos de supervisão para a atuação desses recém-formados, que pode ser suprida por meio de parcerias com universida­des.

2) a criação de uma carreira de Estado para médicos, enfermeiro­s e odontólogo­s para suprir essas regiões mais pobres e desassisti­das e de mais baixo IDH.

3) a revisão da necessidad­e de leis específica­s para cada categoria profission­al (como a Lei do Ato Médico), o que dificulta a existência de atos compartilh­ados mais flexíveis e adequados às equipes multiprofi­ssionais. Dever-se-ia pensar em escopos de prática em que o compartilh­amento seja a regra, não a exceção.

4) o apoio aos profission­ais que atuam nessas áreas, por meio da telemedici­na e da educação permanente.

5) a garantia de condições para o bom exercício profission­al, com unidades de saúde bem equipadas, disponibil­idade de insumos, garantindo a qualidade e resolutivi­dade da atenção básica.

Só assim, contando com médicos e outros profission­ais de modo permanente em todo o país, construire­mos um sistema que atenda às expectativ­as e necessidad­es da sociedade.

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