Folha de S.Paulo

Moda da ‘quebrada’

Incensada pela indústria fashionist­a global, moda ‘da quebrada’ ainda é alvo de olhares enviesados e preconceit­o nas ruas do Brasil

- Pedro Diniz

Incensado pela indústria fashionist­a global, com seus tênis e moletons, estilo da periferia ainda é alvo de olhares enviesados nas ruas do Brasil.

Gostem os puristas da moda ou não, quem dá as cartas no mundo das tendências é a rua. A paisagem fashion das periferias nos grandes centros urbanos moldou a passarela dos últimos cinco anos com uma marcha de moletons, tênis e visuais inspirado na estética esportiva do hip-hop, alçada ao status de luxo nas vitrines desta década.

Mas enquanto o hemisfério Norte glorifica a imagem das calças folgadas, dos acessórios metálicos e da turma que sai na rua ostentando sneakers (termo local para os tênis de grife) assinados por rappers midiáticos, o Brasil, dizem jovens paulistas, marginaliz­a, despreza e até enquadra em casos extremos.

Aos domingos na avenida Paulista, atrás das antiguidad­es de uma feira semanal e logo abaixo de outras relíquias, estas bem mais caras, de Dalí a Renoir, um megarrolez­inho retrata o ápice da modernidad­e e o abismo que a separa do entorno dito normal do miolo da Bela Vista.

Centenas de garotos e garotas entre 16 e 20 anos se encontram no vão-livre do Masp para viver por algumas horas numa bolha fashionist­a, fugindo de julgamento­s sobre suas roupas de “maloca”, “quebrada”, “trap” e “clout” – vertentes de um mesmo estilo urbano global que foi adotado pela juventude local.

Malocas seriam, segundo o estudante Simplício Sousa, 16, o típico look rolezeiro, populariza­do em 2014 nos encontros em shoppings, inspirado nos MCs da periferia e composto por bermuda estampada, polo Lacoste e tênis Mizuno.

Relógio vintage de metal combinado a correntes de aço compõem o visual que, diz Sousa, “tem gente que acha ser roupa de ladrão”.

A imagem do streetwear como se conhece hoje, com bandanas amarradas na cabeça, jaquetas corta-vento e sapatos pesados, remonta aos subúrbios nova-iorquinos dos anos 1980 e 1990, quando a cena musical conhecia as batidas de Public Enemy e Tupac.

Tupac Shakur, aliás, foi seminal na construção da indumentár­ia urbana, com um estilo que essa turma atual reflete em suas referência­s visuais.

Com um modelo Air Jordan 6 retrô da Nike, comprado na Galeria do Rock —o shopping desses jovens—, óculos de lentes coloridas e jaqueta Adidas, o estudante Tawan Felippe, 16, define esse novo street como “espírito livre”, uma forma de se divertir com os amigos e se diferencia­r dos outros.

São as diferenças, aliás, que às vezes tornam sua vida um tanto complicada quando decide vestir essas roupas no dia a dia. “Preconceit­o existe em toda parte e rola comigo quando ando na rua e as pessoas passam escondendo a bolsa”, afirma o adolescent­e.

Cauã Horácio, 16, conhece bem a incômoda sensação de ser julgado pelas pessoas “normais”, de terno, jeans e camiseta, no mêtro paulistano.

Trajado com o mesmo combo bandana, tênis e jaqueta branca, só que da Palace, marca nascida no Instagram e que o fez desembolsa­r R$ 85 na peça — preço bem abaixo dos quase R$ 500 cobrados pelo abrigo produzido por uma grife famosa—, o estudante vê as pessoas trocarem de lugar no vagão assim que ele se senta ao lado.

“Claro que o preconceit­o é maior também porque sou negro, mas é muito chato quando ando à noite e a polícia já vai baixando o vidro do carro e as pessoas cruzam a rua para não passar perto”, conta.

Um dos mais bem produzidos daquele rolê, ele também era um dos vários adolescent­es que empunhavam uma caixa de som portátil, acessório quase essencial na composição desses looks noventista­s.

Enquanto os colegas preferiam uma simples caixinha da marca JBL, a dele, da marca Mondial e comprada nas Casas Bahia, já veio todo grafitada. O amigo, com óculos do tipo “clout”, arredondad­o e com uma grossa armação branca, dividia a picape improvisad­a.

“Clout”, no vocabulári­o urbano, serve para definir o visual ostensivo, e o “trap”, mais fashionist­a e com elementos das raízes do street oitentista.

O estudante Walter Emanu- el diz não ser nem um nem outro, mas admite predileção por grifes famosas, “não caras, porque marcas não se definem por preço, mas pela qualidade”, diz ele, com óculos do tipo gatinho, uma bolsa de alça na qual se lia Hermès, um ponto fora da curva no mar de Nikes, Adidas e Filas.

Fila, vale dizer, estampava várias pochetes e blusões. A marca italiana, que agora tenta se reposicion­ar no segmento do vestuário, é uma das prediletas do auxiliar de cozinha Paulo Ricardo, 19.

De camisa azul combinando com o tom da calça, do boné, dos sapatos e da pochete Fila, ele define seu estilo como “da quebrada”, denominaçã­o vinculada aos bailes funk e, de acordo com ele, alvo de enquadrada­s dos policiais.

“Já perdi as contas de quantas vezes fui parado para revista. Curto Oakley, Gucci, Adidas, mas não tem jeito. Sempre tenho de mostrar a carteira de trabalho para provar que sou trabalhado­r”, diz.

Talvez sua história fosse diferente se ele ouvisse os conselhos de Erik Souza, 19. Todo de preto, o garoto aprendeu que chama menos atenção se andar de preto e só com alguns pontos de cor e luz na roupa.

O colar cravejado de zircônias —gema que imita diamante— e a jaqueta, na qual se lê Versace na etiqueta, quebram a sobriedade. “O preconceit­o com o street muda de tempos em tempos. Agora o pessoal está mais de olho feio em quem usa óculos juliette [espelhado e pontudo nas laterais arqueadas]”, diz.

As garotas sofrem bem menos com o olhar atravessad­o nas ruas —o problema, elas contam, está em casa.

Sabrina Sousa, 18, por exemplo, cansou de ouvir da família se iria “sair na rua desse jeito, que nem um homem”, conta.

Os cabelos “black power”, cortados no mesmo formato adotado pela amiga Nélida Santos, 16, é emblema de como passou a valorizar suas raízes negras. “Andava sempre com cabelo lambido. Isso nunca mais”, afirma Sousa, ladeada por outras duas amigas impecáveis em suas cabeleiras trançadas.

Questões identitári­as e de gênero são peças-chave para entender como música, moda e comportame­nto se fundem nos novos rolês urbanos.

Para o militar do exército Caio Martins, 19, a beleza desses encontros é que todo mundo pode mostrar um estilo “único”, como o que ele diz ter ao, por exemplo, combinar cores e traspassar o casaco no tronco. “Aqui não é quebrada, é um lugar para vir mais social, se sentir bem. Todo mundo aqui se veste do jeito que quer. Não existe mais isso de preconceit­o com a roupa.”

Uma foto, então? “Aí não, né. Pode pegar mal no quartel.” Leia mais nas págs. C3, C4 e C5

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Recorte de ilustração feita por Jeremyvill­e para a Folha
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Fotos Gabriel Cabral/Folhapress O estudante Erik Souza, 19, usa pouca cor para se diferencia­r do estilo ‘quebrada’ Sabrina Sousa , 18, mescla ‘black power’ com visual street

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