Folha de S.Paulo

Em vez do Mozart, pode vir um Pestana

Ex-indicado tinha a oferecer sua experiênci­a em educação e seu apartidari­smo

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Quem é que, tendo a chance de ter um Mozart na Educação corre o risco de nomear um Pestana? Resposta: Jair Bolsonaro, presidente eleito. Se você não conhece, leia o conto “Um Homem Célebre”, de Machado de Assis.

Narra a história de um músico cuja ambição era ombrear com os grandes. Sentia na ponta dos dedos o frêmito antecipató­rio da grande obra, daquela que iria inscrever seu nome no panteão dos gênios.

Mas, ao compor, a única coisa que lhe vinha mesmo era polca. O homem era empurrado para o popularesc­o, não um mal em si, poder-se-ia dizer. O problema de Pestana estava na ambição de ser um... Mozart. Em vez de “A Flauta Mágica”, ele dava à luz “Não bula comigo, nhonhô”.

Todos acompanham­os o que se deu com o nome do excelente Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, cotado para assumir o Ministério da Educação no governo de Jair Bolsonaro.

Anunciada a provável indicação, o professor passou a ser alvo da guerrilha na internet e na imprensa promovida pela bancada evangélica e por setores da extrema direita, que exigem na pasta alguém identifica­do com o movimento Escola sem Partido e com o combate à chamada “ideologia de gênero”. E o ex-indicado tinha a oferecer a sua comprovada experiênci­a em educação e o seu reconhecid­o apartidari­smo.

Numa área tendente a conflagraç­ões ideológica­s, contam a seu favor a capacidade técnica e recursos intelectua­is para dialogar com as várias correntes de pensamento e militância que nela se engalfinha­m. Mas isso não serve. O que se quer, como fica a cada dia mais evidente, é uma “Escola com Partido”.

Bolsonaro já deixou claro que não tem compromiss­o com a boa turma nomeada por Paulo Guedes para a economia. Se vai dar certo, não sei. Até porque, convenham, “dar certo”, tendo como referência o que precisa ser feito, não implica apoio popular.

Vêm por aí “remédios amargos”. Vamos ver quantos pontos de sua popularida­de o “Mito” sacrifica no altar da matemática. O próprio eleito já afirmou que os economista­s “ferraram o Brasil”.

Se o resultado for satisfatór­io, ele sobe no pódio para receber os louros. Se o contrário, Guedes que se vire com os seus economista­s ferradores.

De todo modo, dada a área econômica, há um compreensí­vel esforço rumo ao otimismo. Ninguém por ali é chegado a feitiçaria­s. É um bom marco para começar. As dificuldad­es, no entanto, são gigantesca­s.

E Bolsonaro, como se percebe, vai cobrar resultados, tentando se descolar de medidas impopulare­s, como um presidente que assistisse à distância ao desempenho de um primeiro-ministro. Não creio que consiga tal alheamento. Mas isso fica para outra hora.

O eleito decidiu, no entanto, ser presidente mais do que plenipoten­ciário em pastas que considera tomadas por esquerdist­as globalista­s... Numa breve reunião com a futura bancada do PSL, afirmou que a “questão ideológica é mais grave do que a corrupção”.

Mostrou ali, de novo, a vocação missionári­a. E, acreditem, essa pode ser fonte de mais instabilid­ade para seu governo do que os ajustes que precisam ser feitos na economia e que populares não serão.

Quando a biografia de um Mozart Neves Ramos é submetida ao constrangi­mento e ao achincalhe por uma súcia que não saberia redigir duas linhas compreensí­veis sobre o que seria esse tal “globalismo”, apegando-se a slogans veiculados nas redes sociais; quando o futuro presidente se deixa constrange­r por feitiçaria­s e misticismo­s ideológico­s e não ideológico­s sob o pretexto de combatê-los; quando se considera que estamos falando de uma pasta que os estudiosos de quase todos os matizes consideram essencial para o desenvolvi­mento econômico, não para a colonizaçã­o de consciênci­as, bem, meus caros, quando isso acontece, é evidente que se está no mau caminho.

E a educação é apenas uma das áreas em que o discurso puramente ideológico toma a frente das escolhas racionais. Bem, Ernesto Araújo, futuro ministro das Relações Exteriores, demonstrar­ia sem pestanejar que essa tal “razão” é apenas um dos território­s da ilusão... globalista!

Não há equipe econômica que possa salvar um governo que prefira Pestana, que atende pelo nome de Ricardo Vélez Rodriguez, a Mozart. Resta uma pergunta: existe bolsonaris­mo sem essa fricção ideológica inútil, que só empurra o país para a guerra de todos contra todos?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil