Folha de S.Paulo

Presidente passa mensagem de que, com dinheiro, pode-se matar e escapar impune

- Fred Ryan Diretor editorial e executivo-chefe do The Washington Post. Foi assistente do presidente Ronald Reagan The Washington Post, tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Uma mensagem clara e perigosa foi enviada aos tiranos do mundo todo: ponham dinheiro suficiente na frente do presidente dos Estados Unidos e vocês poderão literalmen­te assassinar sem sofrer consequênc­ias.

Em uma declaração bizarra, imprecisa e prolongada —que serviu para lembrar por que o Twitter tem limitação de caracteres—, o presidente americano, Donald Trump, desculpou o brutal assassinat­o do jornalista Jamal Khashoggi pelo governo da Arábia Saudita. No processo, Trump difamou um homem bom e inocente, chamando Khashoggi de “inimigo do Estado” —rótulo que nem mesmo os sauditas usaram publicamen­te—, enquanto proclamava ao mun- do que sua relação com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, de 33 anos, é importante demais para ser posta em risco pelo assassinat­o de um jornalista. Quaisquer que sejam as objeções das pessoas por não darmos importânci­a ao assassinat­o de Khashoggi, afirmou o presidente, elas não superam a receita (extremamen­te exagerada) que podemos esperar dos negócios de armas com a Arábia Saudita.

Para muitos no The Washington Post, o assassinat­o de Khashoggi é um assunto pessoal. Ele era um colega respeitado, e sua perda é sentida profundame­nte. Mas também temos consciênci­a de nossa missão de serviço público. Quando as autoridade­s aqui em Washington abandonam os princípios que deveriam preservar —foi para isso que as pessoas as elegeram—, é nosso dever chamar a atenção para o fato. De nossa parte, continuare­mos a fazer o possível para expor a verda- de —fazendo perguntas difíceis e seguindo os fatos incansavel­mente para trazer à luz provas cruciais.

Durante toda esta crise, o presidente afirmou que está cuidando de nossos “interesses nacionais”. Mas a reação de Trump não promove os interesses dos EUA —ela os trai. Ela coloca o valor em dólares dos acordos comerciais acima dos tão cultivados valores americanos de respeito à liberdade e aos direitos humanos. E situa as relações pessoais acima das relações estratégic­as dos EUA.

Há mais de 60 anos, a parceria Estados Unidos-Arábia Saudita é algo importante, baseado em confiança e respeito; Trump determinou que os EUA não exigem mais honestidad­e e valores comuns de seus parceiros globais.

A segurança, como salientou Trump, é um importante interesse americano. Mas não tornamos o mundo mais seguro ao impor um duplo padrão de diplomacia, sob o qual os EUA abandonam nossos valores por alguém que se ofereça para comprar nossas armas.

Não tornamos o mundo mais seguro ao abandonar nosso compromiss­o com as liberdades básicas e os direitos humanos. Sob o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, a Arábia Saudita cometeu atrocidade­s que, se perpetrada­s por outros países, causariam forte reação dos EUA.

Sua intervençã­o no Iêmen criou um desastre humanitári­o. Mulheres ativistas foram presas e brutalizad­as simplesmen­te por exigirem o direito de dirigir carros. Líderes empresaria­is sauditas inconvenie­ntes foram torturados dentro de um hotel Ritz-Carlton. O primeiro-ministro do Líbano foi sequestrad­o. O príncipe, na função há apenas 17 meses, comandou um reinado de terror e já estabelece­u um legado sombrio de oposição à liberdade de imprensa.

Deixar de exigir responsabi­lidade por esses crimes não torna os EUA mais seguros. As sociedades estáveis e pacíficas, governadas por líderes que respeitam os direitos de seus cidadãos, precisam de jornalista­s que possam denunciar os erros e responsabi­lizar os poderosos.

A CIA investigou minuciosam­ente o assassinat­o de Khashoggi e concluiu com alta confiança que ele foi dirigido pelo príncipe. Se há motivos para ignorarmos as conclusões da CIA, o presidente deveria imediatame­nte divulgar essas evidências.

Na falta delas, e diante dessa falha de liderança de Trump, agora cabe ao Congresso realmente colocar a América em primeiro lugar defendendo os valores sagrados dos EUA.

Como vimos pelo forte apoio de republican­os e democratas, esse não é um interesse partidário; é um interesse americano. O Congresso deveria exigir mais que bodes expiatório­s e reprimenda­s leves. Deveria, sim, usar seus poderes de investigaç­ão e intimação judicial para pressionar por um inquérito independen­te e completo —não importa aonde ele conduza. Ele deveria usar seu poder de controle de verbas e sua auto- ridade para regulament­ar o comércio exterior, impor penalidade­s efetivas aos assassinos de Khashoggi e suspender a venda de armas fabricadas nos EUA aos sauditas.

Presidente­s de John Kennedy a Ronald Reagan —e muitos outros antes e depois— assumiram posições corajosas pelos direitos humanos e a liberdade de imprensa quando esteve em risco muito mais que a venda de armas.

No Dia de Ação de Graças, os americanos podem agradecer por vivermos sob uma Constituiç­ão que garante o regime da lei, mais que o governo de um homem caprichoso, e que permite que um ramo do governo corrija os erros de outro.

Também podemos agradecer por termos uma imprensa vibrante, protegida pela Primeira Emenda, que busca incansavel­mente fazer que os poderosos prestem contas de seus atos. Podemos confiar que ela cumprirá essa missão no caso de Jamal Khashoggi. Essa busca por verdade e justiça é o que merece um homem inocente, brutalment­e assassinad­o —e o que os valores dos EUA realmente exigem.

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