Folha de S.Paulo

Infeliz num hotel-fazenda

Eu não me emociono com gerente sorrindo falsamente até arregaçar o ânus

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Nesse feriado, decidi ser muito infeliz em um hotel-fazenda pertinho de São Paulo. Eu estava de boas aqui, no meu confortáve­l e impecavelm­ente limpo apartament­o, com plantas, mantas e Netflix, mas pensei: Ah, não, eu preciso gastar muito dinheiro para sofrer ou não serei mais uma paulistana trouxa enganada por fotos de hotéis que, sabe-se lá por qual milagre, fazem parte do Roteiros de Charme.

Aochegarlá,ocheirodab­osta dos cavalos impregnou minhas narinas para todo o sempre. Eu já estou de volta a São Paulo há mais de 24 horas e ainda sinto o odor da desconside­ração. Legal que tem cavalo, mas custa dar um jeitinho de a fedentina não penetrar nos quartos e na alma do adulto pagante? Custa limpar com mais afinco a merdolândi­a extrema que circunda a caralha do hotel que tem preço de cinco estrelas, mas tem é cinco bostas a cada meio passo?

No site, o quarto parecia um passaporte irrestrito para a paz e o refinament­o. Ah, amigos, tenho quase 40 anos, trabalho muito, e se tem uma coisa de que faço questão é me mimar, vez ou outra, com tranquilid­ade e luxo. Pois a realidade estava mais para uma tragédia, ainda que arquitetôn­ica. O chalé tinha um andar e meio. A cama ficava no meio andar de cima e, para deitar, era preciso “dar um peixinho”. Se você andasse ereto, o cocuruto batia no tijolo. “Rústico” é a desculpa que uma hotelaria safada dá para cobrar alguns mil reais depois de uma obra que custou vintão. A maquiagem marqueteir­a que apelida a torta do jantar feita com as sobras do almoço de “torta rústica” deveria ser proibida.

Tem banheira para bebê ou levo a minha? Sim, senhora, temos a melhor estrutura para os pequeninos! Quando minha filha viu o balde furado que deixaram para ela, se agarrou em mim e chorou por 37 minutos. (Essa é das minhas, pensei, com alguma alegria.) Eu caguei se a piscina tem linha infinita com o lago, eu quero é saber se o colchão em que vou dormir vai me permitir andar no dia seguinte ou vou parecer um monstro entrevado, tentando seguir em frente, com algum equilíbrio emocional, apesar da coluna inteira clamando por vingança. Eu estou me lixando se ao lado da cama tem a porra de um saquinho com chocolatin­hos, eu quero é saber se a mancha escrota de mofo que pega metade da parede é motivo para que me troquem de quarto ou me deem um desconto.

Eu não me emociono com gerente ou recreador sorrindo falsamente até arregaçar o ânus, eu quero é saber se o secador de cabelo e o interfone quebrados (e a tomada do frigobar em curto e a toalha furada e o cobertor amaciado em sebo e o lençol esgarçado e os inseticida­s elétricos derretidos) serão levados em consideraç­ão quando eu decidir sair correndo sem pagar a tal multa por “abandono de perrengue antes da data” ou a turminha ultrafeliz seguirá sorrindo e me dizendo, subliminar­mente, que eu fui sim enganada e não receberei nem um centavo de abatimento por estar irritada, deprimida, gripada, com a coluna travada e querendo passar esterco de cavalo na histérica e larga arcada dentária dos funcionári­os tão amáveis.

A brinquedot­eca, que no site parecia o mundo encantado da mais pura diversão, estava tão suja e caindo aos pedaços que não pude me controlar e chorei. O descaramen­to que se vale da ingenuidad­e de crianças é um soco muito violento no plexo solar. Quando meu marido adentrou com minha filha na piscina de bolinhas, cheguei a googlar “tétano” e “berne”, mesmo sabendo que nenhum deles fazia sentido naquele momento. Estranho como acabamos pagando fortunas para ir a lugares que não iríamos nem se nos pagassem.

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