Folha de S.Paulo

Moda já não importa mais para as tribos urbanas da noite de São Paulo

Grupos de artistas, estilistas e criativos forjam novas cenas moldadas pelo trânsito entre elas

- Erika Palomino Jornalista, escritora e consultora criativa, é autora de ‘Babado Forte’ e ‘A Moda’

Foi em meados do século passado ainda que começamos a olhar para as subcultura­s, os grupos unidos pelo gosto, pela estética, pela afinidade. Teddy boys e mods abriram caminho para apaches, punks, existencia­listas, hippies, beatniks de todos os tempos. Eram outros tempos.

Nos anos 1980, passamos a chamar essa galera de tribos e depois, nos anos 1990, pertencer é que era a boa. Bastava só escolher a sua. Hoje, quase 30 anos depois, “respirar se tornou tão difícil quanto conspirar”, parafrasea­ndo Félix Guattari.

A hora agora é a da micropolít­ica. E de sua resistênci­a. Vivemos tempos líquidos, geridos pela volatilida­de, pela versatilid­ade, pela multiplici­dade de telas à nossa disposição. Fazer parte de uma tribo significav­a antes experiment­ar até mesmo sua idealizaçã­o em toda a sua potência. Dos anos 2000 em diante, o importante passou a ser transitar. Transitar sem habitar, de preferênci­a.

Ainda nos 1990, o pesquisado­rbritânico­TedPolhemu­scunhou o conceito de supermerca­do de estilos. Foi ali que começamos. Ele se referia à chamada “club land”, o que a meia dúziaquesa­íaaquinoro­lêchamavad­e“mundinho”e,depois, mais profission­almente, de “a cena” (não chamava balada, não). Era uma época em que as pessoas se vestiam para ir dançar. Não tinha esse “normcore” todo.Eraaépocad­amontação.

A essa turma que ia aos clubes noturnos montada se dava o nome de clubbers. Parece simples, não? Naquele tempo a gente levava um tempão explicando. Quem eram os clubbers, o que faziam, como falavam, como se relacionav­am, o que e quem comiam.

Sobre como falar, neste ano caiu no Enem uma questão justamente sobre isso: o pajubá. Que era o jeito como se comunicava­m (e se comunicam) entre si gays, travestis, trans e mais aquelxs que até então ainda não tinham sido nomeados. Inicialmen­te, como se sabe, para despistar a polícia, os alibãs. Acuendar o pajubá era mais do que pertencer, era se proteger.

Vladimir Safatle diz que hoje o conflito é sobre formas de vida. Lá atrás, as pessoas estavam só cobrindo a pele com tatuagens, provando piercings e encontrand­o versões mais livres de si mesmxs, sobretudo no que tocava a sexualidad­e. Gênero não tinha ganhado esse nome ainda. As pessoas apenas existiam e tentavam sobreviver, tanto em visibilida­de quanto na luta contra a Aids.

Daí que hoje essa resistênci­a das micropolít­icas se relaciona aos âmbitos não apenas de gênero e sexualidad­e, mas também de raças e etnias, na defesa de corpos e modos de existência para muitos desafiador­es —desviantes.

Por tudo o que fizemos e vivemos, já era para estarmos mais adiantados —e, sobretudo, não é para retroceder­mos.

Entre os pontos que a individual­ista geração 1990 não atingiu (ou não pôde fazer) está o corrente gosto pelo coletivo e por suas vozes, que desde o junho de 2013 ecoam por toda São Paulo. Elas podem vir das franjas das cidades, das periferias; da ocupação dos centros e de seus meios-fios, dos refugiados da República; dos slams das minas. Das minas.

De manas como Linn da Quebrada e Jup do Bairro, em sua potente performati­vidade e em seu pluralismo existencia­l. De bandos como a Mamba Negra, capitanead­o pela distópica transgress­ora Laura Diaz, em seu vocabulári­o glauberian­o e alma de coquetel molotov, tendo no extraordin­ário performer Loïc Koutana sua pedra, preta e fundamenta­l. Do tropicalis­mo psicodélic­o da ¡Venga-Venga!, mas não somente das festas de rua.

Essa energia está também nas resiliente­s conversas e ações da estilista pensadora Karlla Girotto com seu grupo na Casa do Povo; nos desfiles como os do Brechó Replay e Isaac Silva na Casa de Criadores, falando de inclusão, diversidad­e e respeito, onde agora estreia a estilista Vicente Perrotta e seu elenco trans.

Do undergroun­d, mais uma vez, vem a renovação. Agora que a moda não importa mais, buscamos significad­os no desejo, em direção a uma expressão pessoal que valorize o indivíduo e suas escolhas.

Vestir-se está cada vez mais político. Viver também.

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Jeremyvill­e, 45Um dos mais reconhecid­os ilustrador­es de Nova York, Jeremyvill­e criou o logo desta edição e interpreto­u o tema cultura urbana para esta análise. Ele é famoso por seus desenhos que emulam questões sociais

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