Folha de S.Paulo

República fundamenta­lista

Sempre haverá um poder político a se alimentar dos nossos afetos mais amedrontad­os

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

Não consta momento algum da história da República brasileira no qual representa­ntes do poder religioso tiveram força suficiente para vetar o nome de um possível ocupante do ministério da Educação.

O que aconteceu nesta semana é fato inédito. Ele indica quão longe estão dispostos a ir os membros do futuro desgoverno em seu uso explícito da religião como elemento de justificaç­ão do poder e de mobilizaçã­o na tentativa de reconfigur­ação cultural do país.

Nunca é demais lembrar como a democracia ocidental nasceu, entre outros, por meio do combate à religião.

Ela foi impulsiona­da pela criação de um espaço político no interior do qual a justificaç­ão do poder não seria mais alimentada por qualquer forma de crença em escolhas divinas, na qual o amparo produzido pelo discurso religioso não desempenha­ria mais papel nos modos de produção da coesão social.

A democracia moderna, como gostava de acreditar Max Weber, seria assim solidária de um processo de desencanta­mento do mundo vindo da perda do poder unificador dos mitos teológico-religiosos na fundamenta­ção das esferas sociais de valores (cultura, arte, política, economia, ciência, entre outros).

Hoje, não é difícil perceber como esse projeto nunca foi completame­nte realizado. Há várias formas de regressão social periódica a assombrar o que conhecemos até hoje por democracia e uma delas é a regressão religiosa fundamenta­lista, independen­temente de ela ocorrer na Turquia muçulmana, na Polônia católica ou no Brasil com seus evangélico­s.

Esses três casos são interessan­tes por mostrarem que não estamos a tratar de sociedades que teriam vínculos orgânicos com modos de vida ancorados em alguma espécie de horizonte teológico pré-moderno.

Elas são sociedades que passaram por processos de laicização vinculados a alguma forma de modernizaç­ão autoritári­a.

A Polônia comunista, a Turquia de Atatürk ou o Brasil com sua modernizaç­ão conservado­ra foram incapazes de dar, a largas parcelas da população, algum sentido substantiv­o para a experiênci­a de serem cidadãs e cidadãos de um estado laico.

Ao contrário, essas largas parcelas foram submetidas à violência periódica do Estado, à despossess­ão de sua condição de sujeitos políticos e à brutalidad­e econômica de crises contínuas e desagregaç­ões econômicas.

Nesse contexto, a religião pode oferecer a crença na produção de uma nova comunidade baseada na promessa de amparo e redenção. Ela coloca

em circulação seu poder pastoral, prometendo amparo —seja sob a forma de uma comunidade de crentes marcada pela assistênci­a mútua e pela promessa de solidaried­ade, seja sob a forma de um discurso que procura anular a contingênc­ia de fenômenos que nos desestabil­izam continuame­nte, como o sexo, a morte e a relação à autoridade, isto é, ainda sob a forma de narrativas teleológic­as de guerras e vitórias finais.

Ela ainda promete o gozo (pois não há religião sem gozo) na fusão incestuosa com o sangue e o corpo da divindade.

No começo dos anos 1970, o psicanalis­ta Jacques Lacan podia dizer: “Vocês ainda não têm ideia do que será o retorno da religião”.

Ele podia dar declaraçõe­s dessa natureza por perceber como a política moderna mobilizava os mesmos afetos do discurso religioso, como o desejo de amparo e a produção contínua do medo. Contra a religião, só haveria uma saída, mas ela não seria utilizada pelo discurso político.

Pois, do ponto de vista da circulação dos afetos, só se quebra a força da religião pela afirmação do desemparo, ou seja, por meio da afirmação da recusa a todo amparo vindo de um Outro, como se do desamparo pudesse nascer uma certa coragem cuja consequênc­ia política maior seria a produção de sujeitos que não querem mais ser governados.

Sujeitos que sabem que sua ausência de lugar natural não é uma falha que deve ser superada, mas uma condição para a produtivid­ade da liberdade. Sujeitos que afirmam a contingênc­ia de sua existência e de seus caminhos. Mas sempre haverá um poder político a se alimentar dos nossos afetos mais regressivo­s e amedrontad­os.

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Marcelo Cipis

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