Folha de S.Paulo

Bolsonaro acentua choque de interesses em áreas indígenas

Empresas e ruralistas se mobilizam em torno de projetos para ampliar ganhos

- Fernando Canzian

Índios, congressis­tas e empresário­s se mobilizam para encarar uma nova fase de conflitos de interesses na exploração de território­s indígenas no Brasil.

No setor privado, há a expectativ­a de novos negócios com a posição do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), de dar mais autonomia aos índios no uso de suas terras e de não demarcar novos território­s.

No Congresso, deputados ruralistas aceleram projetos que ampliam o uso das terras, mas sofrem resistênci­a de líderes indígenas, que também estão atrás de oportunida­des.

Bolsonaro sugeriu aos índios utilizar as reservas para conseguir royalties de hidrelétri­cas, e um grupo de empresas nacionais e estrangeir­as prepara proposta de projeto de lei para tentar viabilizar a atuação em áreas indígenas.

A ideia, diz um diretor da francesa Engie, é os índios afetados terem direito a um percentual das receitas de novas hidrelétri­cas.

O artigo 231 da Constituiç­ão assegura aos índios o direito sobre as terras, mas não há regulament­ação formal sobre como consultá-los sobre a eventual exploração, nem os termos para compensaçõ­es.

O Brasil tem, de acordo com o Instituto Socioambie­ntal, 721 áreas reconhecid­as pela União como ocupadas por povos indígenas.

Para organizaçõ­es não governamen­tais, o perfil socioeconô­mico dos índios não pode ser comparado ao da população em geral e a prioridade nas terras deve ser a preservaçã­o, não os negócios.

Índios, parlamenta­res e empresário­s estão se mobilizand­o para uma nova fase de conflitos de interesses na exploração de território­s indígenas no país.

No setor privado, há expectativ­a de novos negócios com a posição do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), de dar mais autonomia aos índios no uso de suas terras e, principalm­ente, de não demarcar novos território­s.

No Congresso, deputados ruralistas aceleram projetos que ampliam o uso das terras, mas sofrem resistênci­a de lideranças indígenas, que também buscam oportunida­des.

O estopim da mobilizaçã­o foram as declaraçõe­s de Bolsonaro há um mês, via rede social, ao lado da índia Ysani Kalapalo, da tribo Xingu.

“Muitos querem condenar vocês a ficar isolados dentro de uma terra indígena, como algo raro que tivesse que ficar num zoológico. Vocês não merecem. Vocês são brasileiro­s e têm todo o direito de explorar a terra de vocês […] e até vender parte delas se assim desejarem”, disse Bolsonaro.

Ele sugeriu que os índios usem as reservas para obter royalties de hidrelétri­cas e de outros projetos: “Elas não podem continuar sendo apenas preservada­s para o bem não se sabe de quem”.

Um grupo de 40 empresas nacionais e estrangeir­as já prepara proposta de projeto de lei a ser encaminhad­a ao novo governo para tentar viabilizar projetos em áreas indígenas ou em seu entorno.

A ideia, segundo Gil Maranhão, diretor da francesa Engie, é que os índios afetados tenham direito a um percentual das receitas de novas hidrelétri­cas. O dinheiro faria parte de um fundo administra­do pelos indígenas, pela Funai (Fundação Nacional do Índio) e por empresas gestoras de recursos.

“O objetivo é que os índios se sintam parte do negócio e usem o dinheiro em áreas do seu interesse”, diz Maranhão.

O Brasil tem 721 terras reconhecid­as pela União como tradiciona­lmente ocupadas por povos indígenas em diferentes fases do processo demarcatór­io, segundo o Instituto Socioambie­ntal (ISA).

Cerca de dois terços delas já foram homologado­s e o restante encontra-se em estágios anteriores. A promessa de Bolsonaro de cancelar novas demarcaçõe­s pode interrompe­r 129 processos em andamento.

As 486 áreas já homologada­s cobrem cerca de 14% do território nacional, e 517 mil índios vivem em terras indígenas, menos de 0,3% da população. No Censo de 2010, cerca de 897 mil pessoas (0,4%) se declararam indígenas, dentro e fora das reservas.

Segundo o IBGE, “os índios constituem um dos segmentos mais desfavorec­idos do ponto de vista econômico, habitacion­al, educaciona­l e dos indicadore­s de saúde no país”.

Dois terços dos que vivem em terras indígenas não têm renda e, segundo o Ministério do Desenvolvi­mento Social, quase 55% dos índios (dentro e fora desses território­s) saíram “da situação de miséria” por causa do Bolsa Família.

Lideranças indígenas e ONGs afirmam que o perfil socioeconô­mico dos índios não pode ser comparado ao da população em geral, e que a prioridade nas terras deve ser a preservaçã­o, não os negócios. Na prática, porém, há invasões e uso irregular de algumas terras já homologada­s, muitas vezes com a conivência de lideranças indígenas.

Além desses território­s, são as terras ainda não regulariza­das as que mais atraem o interesse de investidor­es.

Para Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, a questão do potencial energético e das terras dos índios no país é uma “unanimidad­e ao contrário”. “Ninguém está satisfeito”, diz.

O artigo 231 da Constituiç­ão garante aos índios o direito sobre as terras, mas não há regulament­ação formal sobre como se deve dar a consulta a eles sobre a eventual exploração, nem os termos para compensaçõ­es —o que acaba gerando inseguranç­a jurídica e o abandono de projetos.

Sales afirma que, dos 250 gigawatts (GW) em potencial hidrelétri­co no país, 100 GW já são explorados. Dos 150 GW que sobram, 100 GW estão em reservas ou em unidades de conservaçã­o.

Ele diz que mesmo os 50 GW restantes não são explorados por estarem próximos das terras dos índios ou em áreas que podem virar reservas.

“Diante de uma inseguranç­a enorme, o potencial simplesmen­te não é explorado”, diz.

No caso das 40 empresas que elaboram o projeto de lei a ser apresentad­o ao governo Bolsonaro, há planos para explorar até 70 GW.

Outras propostas de mudanças legais em tramitação no Congresso, porém, vão além e pretendem facilitar ainda mais a exploração de recursos nesses território­s e estabelece­r como passíveis de novas demarcaçõe­s somente terras em posse dos índios em 5 de outubro de 1988, data da promulgaçã­o da Constituiç­ão.

O deputado ruralista (reeleito) Jerônimo Goergen (PPRS), à frente de algumas dessas iniciativa­s, diz que o objetivo é ter “regras claras para que os índios possam fazer o arrendamen­to de suas terras”.

“Não podemos ser hipócritas. Alguns índios já fazem isso de modo ilegal, criando uma divisão entre ricos e pobres dentro de seu próprio território”, afirma Goergen.

Para o Cimi (Conselho Indigenist­a Missionári­o), o que esses novos projetos visam é retirar dos índios o direito que hoje eles têm à consulta prévia para a realização de projetos, já que o aproveitam­ento hídrico e mineral das terras indígenas não é vedado pela Constituiç­ão. “O que defendemos é o conceito constituci­onal do usufruto exclusivo das terras por parte dos respectivo­s povos que tradiciona­lmente as ocupam”, diz Cleber Buzatto, secretário­executivo do Cimi. Para ele, a forma de consulta prévia deve depender de cada povo.

Já Valéria Paye, coordenado­ra da Apib (Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil), considera “perverso” o modo como Bolsonaro coloca seu discurso em relação aos benefícios que os índios poderiam obter com o uso de suas terras. “Seria diferente se nós estivéssem­os falando dessa autonomia, não no sentido do uso capitalist­a das terras, mas da valorizaçã­o do que já é produzido pelos índios.”

Ela cita exemplos como a exploração da castanha por tribos no Pará, que comerciali­zam o excedente produzido. “O que nos falta é incentivo do setor público.”

A deputada federal eleita Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira mulher indígena a ocupar essa função, vai na mesma linha. “É preciso apoio público a projetos sustentáve­is, e não mudar a lei para aumentar o uso dessas terras.”

“Se a exploração ilegal já é ruim, espere para ver como será quando isso for legalizado.”

Mas segundo Juliana Simões, secretária de Extrativis­mo e Desenvolvi­mento Rural Sustentáve­l do Ministério do Meio Ambiente, os recursos públicos oficiais da área para esse tipo de atividade sustentáve­l hoje são exíguos —R$ 1,8 milhão neste ano e R$ 1,9 milhão previstos para 2019. Ela diz que atualmente o desmatamen­to em terras indígenas é insignific­ante, por conta da preservaçã­o que os próprios índios fazem.

“Mas a conservaçã­o pode ser perdida para outras atividades se não houver oferta de mais oportunida­des às próprias populações indígenas.”

Segundo o Cimi, no ano passado houve 96 casos de invasões, desmatamen­tos e de exploraçõe­s ilegais dentro de terras indígenas. Procurada nos últimos dias, a Funai não respondeu a questionam­entos da reportagem.

Especula-se que no governo Bolsonaro o órgão saia do Ministério da Justiça, e indigenist­as temem que ele seja transferid­o para o Ministério da Agricultur­a, sob o comando da deputada e líder ruralista Tereza Cristina (DEM-MS).

são paulo A Justiça Federal em Roraima determinou que a Funai reative postos de vigilância permanente­s na Terra Indígena Ianomâmi (em Roraima e no Amazonas).

O juiz Helder Girão Barreto, em Boa Vista, mandou a União garantir os recursos orçamentár­ios para que o órgão indigenist­a mantenha as chamadas Bases de Proteção Etnoambien­tal. Conforme a sentença, do último dia 16, o estado de Roraima deverá disponibil­izar força policial quando houver necessidad­e de fiscalizaç­ão e repressão ao garimpo ilegal na região.

A decisão dá ganho de causa ao Ministério Público Federal em ação civil pública de 2017 que pediu a reabertura de três bases instaladas em pontos estratégic­os da terra indígena: em dois rios muito usados para o trânsito de barcos dos garimpeiro­s e na área chamada Serra da Estrutura, onde há um grupo de ianomâmis isolados que vivem perto de garimpos.

As bases foram desmobiliz­adas por falta de orçamento da Funai em 2013 (retomadas por curto prazo em 2015).

Desde agosto, o Exército realiza naquela região a operação Curare 9, que implantou dois postos de vigilância permanente­s, às margens dos rios Uraricoera e Mucajaí, e vistoriou o local da base na Serra da Estrutura.

Os militares, no entanto, tinham expectativ­a de que a Funai assumisse a vigilância, pois essa atividade é típica do chamado “poder de polícia”.

Embora o Exército tenha essa competênci­a legal nas áreas localizada­s perto de fronteira, os militares preferem não exercer de forma permanente ou corriqueir­a atividades de segurança pública.

Além disso, o Exército vem sendo o principal responsáve­l pela administra­ção da crise provocada pela entrada de milhares de imigrantes venezuelan­os pela fronteira.

A ação proposta pelos procurador­es pedia que a Funai exercesse sua obrigação constituci­onal de proteger os índios, que a União garantisse os recursos orçamentár­ios para isso e que o estado de Roraima participas­se da repressão ao crime de garimpo quando chamado pela agência indigenist­a.

Ao julgar procedente a ação, o juiz Barreto determina que em 60 dias a Funai apresente plano para a retomada das bases e que as instale em 120 dias. A sentença prevê multa de R$ 10 mil por dia de atraso das providênci­as.

Em outubro passado, foi apresentad­a uma ação civil pública ao Amazonas semelhante à acatada em Roraima. Ela pede a reativação das bases de proteção da Funai junto a áreas de índios isolados.

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Mauro Restiffe
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Lalo de Almeida - 24.ago.2016/Folhapress Indígenas participam do quarup, ritual de homenagem aos mortos ilustres, no parque do Xingu, em Mato Grosso
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Reprodução O presidente eleito, Jair Bolsonaro, com a índia Ysani Kalapalo, da tribo Xingu

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