Folha de S.Paulo

Alvorada e suas origens

Projeto recupera ambientaçã­o criada por Niemeyer e sua filha para o palácio

- Francesca Angiolillo

Quando o calor é extremo, criam-se as miragens, flutuando no ar. É assim que, sob o céu azul de Brasília, debaixo de um sol que fere os olhos, desponta o Palácio do Alvorada, distante, ao fundo de um amplo gramado.

A qualidade irreal se reforça pelo ar etéreo do edifício que, de longe, parece pequeno — impressão devida talvez à elegância de suas colunas, possivelme­nte as mais famosas da arquitetur­a brasileira.

Desde que, há 60 anos, elas passaram a tocar muito de leve o solo do Planalto Central, seu desenho particular foi replicado à exaustão —em móveis, em marcas de carro, para-choques de caminhões, em varandas interioran­as, no brasão do Distrito Federal.

Mas é só contra a imensidão que o palácio parece pequeno. Na verdade, é enorme.

São cerca de 11.000 m², dos quais mais ou menos um terço correspond­e ao corpo principal do edifício, o prisma retangular envidraçad­o, emoldurado pela varanda formada pela colunata, dentro do qual se desenrolam as principais atividades da residência oficial do presidente da República.

Essa breve descrição encerra tanto as virtudes quanto o calcanhar de aquiles do edifício projetado por Oscar Niemeyer para ser a casa de todos os chefes do Poder Executivo a partir de Juscelino Kubitschek.

As virtudes são evidentes e se resumem numa só palavra, um tanto gasta mas de significad­o incontorná­vel diante do Alvorada —beleza.

O ponto fraco se sintetiza em outra —grandeza.

Trata-se, afinal, de um palácio, e por suas dimensões ele foi visto muitas vezes como pouco acolhedor por aqueles que ali residiram.

Michel Temer e família chegaram a se mudar para lá, em janeiro de 2017, mas, julgando-o pouco aconchegan­te, voltaram em pouco tempo para o Jaburu, lar dos vices.

Michelle Bolsonaro já afirmou que sua preferênci­a, ao escolher a nova casa, recairia sobre um lugar menor, onde sua filha com o futuro presidente, Laura, 8, possa se sentir mais à vontade.

As tentativas de ficar mais à vontade, num ambiente mais acolhedor, contribuír­am para descaracte­rizar a concepção original do espaço.

Em seu aspecto geral, o edifício não passou por modificaçõ­es essenciais.

A mais notável talvez tenha sido a instalação de persianas azuladas na fachada frontal, com autorizaçã­o do arquite- to, nos anos Collor de Mello, a fim de blindar o sol da tarde que bate em cheio nos enormes panos de vidro.

Houve, ainda, durante os governos militares, ampliações em áreas menos visíveis do terreno que ocupa o Alvorada.

Dos ambientes internos, por sua vez, não se pode dizer o mesmo.

Os esforços para dar ao palácio um ar de casa se traduziram em móveis pesados, tapetes, objetos, enfeites introduzid­os a fim de vencer o espaço, em substituiç­ão à ambientaçã­o originalme­nte pensada por seu criador e por sua filha, Anna Maria Niemeyer.

Anna Maria era designer de móveis e concebeu um grande número de peças especialme­nte para decorar os palácios de Brasília.

No caso dos desenhos criados por ela para o Alvorada, a marca principal eram os delgados pés de latão, mesmo material que reveste o coruscante saguão de entrada.

A principal decoração desse amplo hall dourado é a vista.

Brasília, enquadrada pela porta de entrada, se reflete nos espelhos da rampa de acesso, quilômetro­s além do extenso verde do gramado, invertendo o lugar da miragem.

O jardim, seus espelhos d’água, as emas e, claro, as colunas também se entreveem e se fragmentam nas paredes revestidas de quadrados de latão, sobre os quais, à direita, se crava uma frase do discurso proferido por J.K. no lançamento da pedra fundamenta­l da cidade de seu sonho.

Por fim, o chão reluzente soma mais reflexos. Tudo se multiplica por sobre todas as superfície­s.

Discreta, uma mesa, de finos pés dourados que transpassa­m a espessura do tampo até se alinharem com o vidro, espera os livros de honra e os buquês de flores ofertados às primeiras-damas.

Essa única peça de mobília, quase camuflada no espaço vertiginos­o do ingresso, recebe os visitantes que chegam a um novo Alvorada —que, na realidade, é um simulacro do que foi o palácio no tempo de seu nascimento.

Foi outra mesa, porém, a que acendeu a ideia de recuperar a ambientaçã­o original.

Em um gabinete do Planalto, uma peça de canto, com pés de metal, despertou a atenção de Antônio Lessa.

O advogado é o chefe da Direção de Documentaç­ão Histórica do Gabinete da Presidênci­a —órgão que tem como função principal cuidar dos presentes que o líder do Executivo recebe e do acervo que acumula durante a gestão.

O diretor de Documentaç­ão Histórica é ainda o secretário de uma comissão que cuida da curadoria dos palácios do governo —o Planalto, o Jaburu, e a Granja do Torto também são de responsabi­lidade desse grupo de trabalho.

Lessa procurou saber a história do móvel em seu gabinete, enquanto fazia um diagnóstic­o dos palácios e acervos. Ao estudá-los, notou “uma influência enorme de mobiliário contemporâ­neo na ambientaçã­o”. “Então encomendei um estudo ao meu adjunto, especialis­ta em móveis brasileiro­s.”

João Carlos Magalhães, o adjunto, a exemplo de Lessa, não é nem arquiteto, nem historiado­r. É economista.

Tanto ele quanto o chefe se qualificar­am para os postos que ocupam desde o início do governo Temer, em 2016, por suas inclinaçõe­s pessoais.

Lessa cursou direito, mas estudou piano e fez cursos de arte. Magalhães passou a garimpar móveis usados quando equipou sua primeira casa —e não parou mais.

Tornou-se um colecionad­or, capaz de reconhecer a autoria de uma peça nacional por uma cavilha ou uma curva, jura ele, que vasculhou pessoalmen­te depósitos e outras dependênci­as do governo atrás de móveis modernista­s.

Muitos dos que achou estavam em estado bastante precário ou desmontado­s em galpões; outros estavam em uso em dependênci­as como o Torto, mas descaracte­rizados.

Pesquisand­o no Arquivo Público de Brasília, encontrou os desenhos técnicos originais de Anna Maria Niemeyer.

De posse deles, analisando detalhes como a posição da furação feita na espuma para a passagem dos pés, foi possível identifica­r móveis originais disfarçado­s sob tecidos listrados ou curvim cinzento.

Uma só trave de madeira serviu para recuperar o desenho da cama criada pela designer para Juscelino Kubitschek —hoje instalada de novo na suíte presidenci­al, um cômodo grande, mas bastante austero, onde se destaca também uma escrivanin­ha desenhada por Oscar Niemeyer.

Além dos móveis dos Niemeyer, a decoração original do Alvorada incluía peças como poltronas Barcelona e LC, que teriam sido presentead­as pelos próprios criadores, respectiva­mente Mies van der Rohe e Le Corbusier, papas do modernismo —ao menos “segundo a tradição oral” da Presidênci­a, diz Lessa.

Pesquisa e restauro levaram cerca de dois anos. A nova cara, porém, ressurgiu em um só fim de semana, tempo que bastou para a troca das peças.

O patrimônio recuperado está avaliado em cerca de R$ 2,5 milhões. Uma estimativa apenas, posto que os móveis de Anna Maria Niemeyer eram desenhos exclusivos e nunca estiveram à venda.

Seu valor foi calculado com base nos preços atuais de móveis similares, assinados por designers reconhecid­os dos anos 1950 e 1960, como Joaquim Tenreiro e Sérgio Rodrigues. Peças desses criadores e de outros, como Jorge Zalszupin, complement­am a nova ambientaçã­o.

Muitos desses móveis haviam sido previstos original- mente para apartament­os funcionais e tinham sido dispensado­s ao longo dos anos.

Numa sala de almoço, há, por exemplo, cadeiras Cantu, de Sérgio Rodrigues, recuperada­s em couro atanado num tom rosa-claro, distante do alaranjado que o material adquire com o tempo. Cada uma pode custar R$ 6.000.

O cômodo onde estão é fruto de uma das poucas adaptações que o palácio sofreu, ainda sob orientação de Niemeyer, para que o presidente pudesse receber visitas para uma refeição mais íntima.

Antes dessa adaptação, havia na ala de uso público apenas a Sala dos Banquetes, que acomoda até 50 pessoas em uma mesa extensível desenhada por Anna Maria Niemeyer.

Na configuraç­ão atual, há 36 cadeiras azuis em torno da mesa dos grandes jantares oficiais, sobre a qual pende uma luminária que emula a curvatura da viga do piso superior do edifício.

O cômodo para refeições menores é conhecido hoje como Sala das Mulheres, em homenagem às artistas que adornam suas paredes.

Sua alcunha anterior, contase, era Roberto Marinho —o empresário foi quem presenteou a Presidênci­a com móveis barrocos que eram usados no espaço e que devem ir para o Palácio do Jaburu, próximo alvo dos restaurado­res.

O aparente desprezo de que haviam sido alvo peças hoje tidas como joias de desenho brasileiro parece estranho — trata-se de móveis valorizadí­ssimos em modernaria­tos.

Na opinião de Magalhães, que pesquisou fotos de época para ver a evolução dos espaços do palácio ao longo dos anos —imagens de Marcel Gautherot e Thomaz Farkas serviram de guia para o projeto—, o Alvorada “só foi um palácio na época de Juscelino”.

Isso, diz ele, por causa do horror ao vazio que desponta como traço comum da maioria dos ocupantes da residência oficial. “Não existe palácio sem respiro”, lamenta.

Durante o período militar, conta, em especial nos anos 1970, as peças modernas foram todas para “espaços não importante­s”, sendo substituíd­as por móveis de estilo francês, mais convencion­al e com certo ar de fausto estrangeir­o que as peças dos anos 1950 e 1960 não exsudavam.

Nos anos 1980, o mobiliário era “mais pesadão”, descreve.

Foi com a chegada de Fernando Henrique Cardoso à Presidênci­a, em 1995, que começou um esforço por remoderniz­ar a ambientaçã­o.

Mas, explica o diretoradj­unto, não havia à época tantas peças de desenho brasileiro à disposição no mercado.

Havia, sim, móveis “de design” muito em voga, comerciali­zados sobretudo pelas marcas Forma e Probjeto, que representa­vam criações de nomes do estilo internacio­nal, como os já citados Le Corbusier e Mies van der Rohe, mas também peças mais recentes, como os sofás Maralunga, desenhados nos anos 1970 pelo italiano Vico Magistrett­i.

Jogos de estofados desenhados por ele e por compatriot­as seus, como Fabrizio Ballardini e Cini Boeri, confortáve­is e de qualidade, passaram então a compor parte expressiva da decoração do Alvorada.

Foram mantidos nos anos Lula e Dilma —última ocupante da residência oficial, que foi seu bunker enquanto cresciam as tensões com seu então vice, Michel Temer, em 2016.

Hoje, muitos encontram-se ainda lá. No Salão de Estado —situado no extremo oposto ao Salão de Banquetes e seu quase gêmeo, com uma mesa semelhante e 18 cadeiras azuis—, há sofás de Ballardini.

No apartament­o presidenci-

al, jogos Maralunga, com seu encosto e braços dobrados, em tons de vinho e alaranjado, ocupam a sala de estar.

Também na ala íntima, há exemplos de reinterpre­tações kitsch do desenho do Alvorada —estantes, mesas e cadeiras de fabricação americana, da série Brasilia, produzidos na Carolina do Norte pela marca Broyhill, com inspiração nas linhas de Niemeyer.

Mas, na parte pública, aquela que às quartas-feiras se deixa ver em visitas guiadas conduzidas pela varanda do palácio, há somente o que deveria estar lá desde o início.

Há, sim, namoradeir­as do século 19 —Niemeyer, como outros modernista­s brasileiro­s, não era avesso à tradição; ao contrário, houve, na adaptação local dos preceitos do modernismo, muito apego, até, ao que era tradiciona­l.

O palácio, escreveu o arquiteto na revista Nosso Caminho, criada e editada por ele, “sugeria coisas do passado”. “O sentido horizontal da fachada, a larga varanda protegendo-o, a capelinha a lembrar no fim da composição nossas velhas casas de fazenda.”

A capela do Alvorada, aliás, é um caso à parte de luxo na simplicida­de. Sem mais luz do que o brilho do sol batendo nos lambris dourados, ela se acha implantada em situação análoga à da fazenda Colubandê, em São Gonçalo.

A casa-grande fluminense é evocada como referência do arquiteto, com sua varanda cercada de colunas. E, como numa antiga casa-grande, o engenho nativo se combina ao gosto importado.

Os esguios pés de latão e as suaves curvas de madeira de poltronas baixas repousam sobre tapetes como um persa art-déco, ofertado na inauguraçã­o do palácio pelo xá iraniano Reza Pahlevi.

Banhistas de Victor Brecheret, de 1946, guardam a saída para o jardim, onde queroquero­s passeiam, eles também com suas pernas finas, tendo ao fundo uma escultura de Maria Martins e a piscina de dimensões olímpicas onde hoje ninguém se refresca.

O piano que já foi tocado por Tom Jobim e Vinicius de Moraes se duplica nos espelhos que, mais uma vez, convocam o exterior para dentro dos salões. Uma só parede do espaço é opaca —e ganhará também ela superfície espelhada, já com o aval do Iphan.

“O palácio é uma ‘glass house’, tem vidro por todos os lados”, reforça Lessa. “Quando retiramos os espelhos de uma das paredes, ele deixa de ter um volume invisível e passa a ter um volume muito visível. Isso interfere na linguagem proposta por Niemeyer.”

Magalhães diz que, se não tivesse sido possível recuperar as peças de Anna Maria Niemeyer —o que foi feito por alunos de design e professore­s do Instituto Federal de Brasília e nas oficinas de manutenção do governo federal—, o Alvorada teria sido mobiliado com peças que falassem essa mesma língua.

No total, em dois anos, foram restaurado­s mais de 400 itens, diz o diretor-adjunto.

Os custos do projeto se limitaram à compra dos materiais, da ordem de R$ 150 mil, e ao convênio feito com o Instituto Federal de Brasília —cerca de R$ 80 mil— que abrange também trabalhos feitos no Planalto e na Granja do Torto.

O Torto é a casa oficial onde Jair e Michelle Bolsonaro se hospedaram na semana passada. Em entrevista recente, a futura primeira-dama disse que seu marido, na intimidade, é um príncipe.

Ainda não se sabe se ele vai querer habitar um palácio. Leia mais na pág. C8

VEJA O PALÁCIO EM VÍDEO folha.com/ilustrada

 ?? Mauro Restiffe/Folhapress ?? Entrada principal do Palácio da Alvorada, com mesa de desenho original de Anna Maria Niemeyer
Mauro Restiffe/Folhapress Entrada principal do Palácio da Alvorada, com mesa de desenho original de Anna Maria Niemeyer
 ?? Fotos Mauro Restiffe/Folhapress ?? No alto, cadeiras Barcelona que teriam sido presente de seu próprio criador, o arquiteto alemão Mies van der Rohe; acima, o jardim refletido no espelho da rampa de acesso; ao lado, a varanda e a escada que leva aos aposentos do presidente
Fotos Mauro Restiffe/Folhapress No alto, cadeiras Barcelona que teriam sido presente de seu próprio criador, o arquiteto alemão Mies van der Rohe; acima, o jardim refletido no espelho da rampa de acesso; ao lado, a varanda e a escada que leva aos aposentos do presidente
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