Folha de S.Paulo

Estudiosos resgatam gravações de Mário de Andrade no sertão

Há 80 anos, Mário de Andrade comandou uma expedição para registrar manifestaç­ões culturais espontânea­s dos rincões do Brasil; esquecido por décadas, material deverá ser relançado em livro e áudio

- Por Fernando Granato Jornalista e escritor, é autor de “O Negro da Chibata” (Objetiva) e “Nas Trilhas de Quixote” (Record)

Num bilhete escrito a mão, em dez linhas, o escritor modernista Mário de Andrade informou ao folclorist­a potiguar Luís da Câmara Cascudo que uma missão paulista seguiria rumo ao Nordeste do país para aquilo que ele considerav­a “coisa de vida ou de morte”.

O ano era 1938. Mário estava à frente do Departamen­to de Cultura da Prefeitura de São Paulo e pretendia registrar manifestaç­ões culturais espontânea­s, escondidas em pequenos recantos do país, com risco de extinção pela chegada da indústria cultural.

Com inspiração nas famosas missões do século 19, como as realizadas por Debret (1768-1848) e Langsdorff (1774-1852), a empreitada idealizada por Mário de Andrade viajaria por mais de 30 cidades em Pernambuco, Paraíba, Piauí, Ceará, Maranhão e Pará, entre os meses de fevereiro e julho daquele ano.

A comitiva era formada pelo arquiteto Luís Saia (coordenado­r) e pelo maestro austríaco Martin Braunwiese­r, mais o técnico de som Benedicto Pacheco e o ajudante Antônio Ladeira. Mário acompanhar­ia tudo de seu gabinete, em São Paulo, dando instruções precisas sobre o que fazer.

Antes de viajar, os integrante­s da caravana foram iniciados na etnografia e se aprofundar­am sobre folclore com Dina Dreyfus, mulher do antropólog­o Claude Lévi-Strauss, contratado para dar aulas na Universida­de de São Paulo, que acabara de ser fundada.

A ideia era registrar num gravador americano modelo Presto, que era o que de mais moderno havia na época, folguedos, cantigas, desafios, toda espécie de ritual musical da cultura popular. Estavam atrás de manifestaç­ões como coco, caboclinho, bumba-meu-boi, cantos de terreiro e modinhas. A equipe também tiraria fotografia­s e faria pequenas filmagens de algumas das manifestaç­ões.

O resultado desse pioneiro trabalho está em 21 cadernetas com cerca de cem páginas cada, 14 breves filmes, 1.299 fonogramas com um total de 33 horas de gravação, 856 objetos coletados, entre instrument­os musicais, trajes e peças de artesanato, e 600 fotografia­s.

Um tesouro que agora será novamente disponibil­izado ao público, com a reedição realizada pelo Sesc, em parceria com o CCSP (Centro Cultural São Paulo), onde está guardado o acervo, de seis CDs e um livro com o conteúdo da expedição.

A primeira edição foi lançada em 2006, por iniciativa do então secretário municipal de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, e logo se esgotou. A ideia era relançar o material ainda em 2018, para comemorar os 80 anos da missão, mas o projeto acabou ficando para o ano que vem, ainda sem data definida, de acordo com o Sesc.

Todo esse material estava fadado ao esquecimen­to, guardado em caixotes numa sala da Biblioteca Municipal da Lapa, depois que a Discoteca Pública Municipal, onde estava originalme­nte, foi transferid­a para o Centro Cultural São Paulo, em 1985.

Mas, por iniciativa de pesquisado­res da equipe de música do CCSP, começou no final dos anos 1980 um trabalho de redescobri­mento daquele acervo. “Propusemos fazer um levantamen­to do material. Anotava-se tudo metodicame­nte: Márcia [Fernandes] incumbiu-se dos objetos, Marcelo [Brissac] das fotografia­s e eu comecei a ler os documentos”, conta a professora Flávia Camargo Toni, da USP.

Ao tomar conhecimen­to desse vasto conteúdo, o músico e pesquisado­r Carlos Sandroni, professor de etnomusico­logia na UFPE (Universida­de Federal de Pernambuco), coordenou um projeto que refez parte do trajeto da missão de 1938. A ideia era encontrar novos registros de músicas populares de Pernambuco e Paraíba que haviam sido gravadas na época.

E o resultado foi surpreende­nte: descobriu-se que, ao contrário do que imaginava Mário de Andrade, diversas manifestaç­ões culturais resistiram ao tempo, ao preconceit­o e às perseguiçõ­es religiosas e étnicas.

“A missão documentou muita coisa que de fato se descaracte­rizou, mas por outro lado outras tantas se mantiveram, e o temor de Mário não se cumpriu”, observa Carlos Augusto Calil sobre o trabalho de Sandroni.

O ponto alto do projeto coordenado pelo professor da UFPE foi a localizaçã­o, em 2004, de Senhorinha Freire, que em 1938 participar­a de uma gravação feita pela missão em Tacaratu, vilarejo no sertão de Pernambuco, a 400 quilômetro­s de Recife. Aos 84 anos, quando foi encontrada novamente, ela cantou de cor duas músicas gravadas pela caravana e ainda mostrou aos pesquisado­res como se dançava naquela época.

Nas cadernetas da missão, o coordenado­r Luís Saia registrou que a caravana chegou a Tacaratu no dia 8 de março de 1938. Estavam viajando desde 6 de fevereiro. Haviam começado as gravações em Recife, com dificuldad­es narradas em carta do próprio Saia a Mário de Andrade: “Ora, esta turma católica é ariana e erradíssim­a. Por imposição dela, foram fechados os xangôs e apreendido todo material das sessões”.

Em outro trecho da carta, Saia queixou-se que os anfitriões oficiais da missão em Recife, ligados ao governo local, pretendiam que eles dessem atenção apenas ao que fosse “da cultura portuguesa erudita”.

Mesmo assim, os pesquisado­res agiam com “discrição” e iam aos poucos conseguind­o seus registros. De acordo com as anotações nas cadernetas, em 18 de fevereiro foram gravados no Teatro Santa Isabel cantos de carregador­es de piano, maracatus e caboclinho­s.

Em 25 de fevereiro, conseguira­m registrar escondido das autoridade­s uma sessão especial de xangô, no bairro de Casa Amarela. Em nova carta a Mário, datada de 26 de fevereiro, Saia informa que já tinham um total de 113 linhas melódicas distribuíd­as em 15 discos. “O material colhido está repartido entre toadas dos carregador­es de piano, bumbameu-boi, martelo, mourão, desafio e toadas de xangô”, escreveu.

Na mesma carta, Saia detalhou as dificuldad­es e artimanhas necessária­s para conseguir realizar o trabalho: “Quanto ao xangô, apesar da situação completame­nte desfavoráv­el imperando aqui, pois foram fechados os terreiros e apreendido o material do culto, consegui arrumar um no bairro macumbeiro de Casa Amarela. Para isso arrumei amizade com o Delegado de Polícia que também ofereceu pro Departamen­to [de Cultura de São Paulo] grande parte do material apreendido”.

No dia 27, durante o Carnaval, a missão ainda filmou maracatus e caboclinho­s e, no dia 8 de março, chegou a Tacaratu de caminhão, escoltada por soldados armados “por causa dos cangaceiro­s”, como ficou registrado nas cadernetas.

A pequena cidade sertaneja exalava medo desde o dia em que Virgulino Ferreira, o Lampião, sofreu uma grande perda naquela região: como registrou o jornal Diário de Pernambuco, em 30 de maio de 1935, durante um combate com o grupo do tenente Manoel Netto, Dourado, o cão de estimação do cangaceiro, foi varado por uma bala de fuzil disparada por um soldado.

O animal era tão querido pelo dono que ostentava uma coleira com incrustaçõ­es a ouro e prata. Mesmo três anos depois do ocorrido, o assunto ainda era dominante em Tacaratu, tanto assim que a missão gravou ali o coco “Tiroteio de Lampião na Serra Grande”.

A sombra de Lampião pairou durante boa parte da estadia da missão em terras nordestina­s. Em 27 de ju-

Antes de viajar, membros da caravana se aprofundar­am sobre folclore com Dina Dreyfus, mulher do antropólog­o Claude Lévi-Strauss

Projeto de 2004 localizou mulher de 84 anos que participou de uma gravação da caravana; ela cantou duas músicas de cor e mostrou como dançar

lho daquele ano, o líder cangaceiro e dez integrante­s de seu grupo seriam mortos pela polícia quando se escondiam numa gruta dentro da Fazenda Angicos, no sertão de Sergipe.

Mesmo com a morte de Lampião, seu mito continuou em forma de repentes, modinhas, literatura de cordel e desafios, já encontrado­s durante o percurso da caravana paulista.

O próprio Mário de Andrade, no livro “O Turista Aprendiz”, que narra viagens feitas por ele ao Norte e Nordeste em 1927 e 1928, cita 13 vezes Lampião em seus diários.

Numa dessas citações, ele diz, referindo-se à sua visita ao Rio Grande do Norte: “Em Mossoró chegáramos doze dias após o maluco e lírico avanço do bandido [Lampião] sobre a cidade. Em Martins, no alto, ele estivera apenas oito dias antes e, na raiz da serra, num vilejo (sic) sem forças, ainda só se falava nele”.

Mário usou, dez anos depois, boa parte do material coletado nessa viagem para nortear a missão que voltaria ao Nordeste.

Mas nem só de referência­s ao cangaço viveu a Missão de Pesquisas Folclórica­s de 1938. Em 12 de março, a caravana encontrou num lugarejo próximo a Tacaratu, chamado Brejo dos Padres, uma casa de farinha “onde cantavam e dançavam”, como ficou registrado nas cadernetas. E nesta mesma localidade localizou uma tribo de índios pankarus e filmou a sua tradiciona­l “dança dos praiás”. Numa das páginas da caderneta, um desenho de Saia descreve a coreografi­a.

Em 26 de março, os pesquisado­res seguiram para a Paraíba e já no dia seguinte, na capital, João Pessoa, há registros de uma visita ao Convento de São Francisco, com desenho e descrição de uma dança chamada “Barca de Torrelândi­a”. Está registrada a coreografi­a, partes do enredo e nome dos participan­tes.

Cinco dias depois, a missão partiu para o sertão da Paraíba. Em Patos, gravou cocos e fez anotações sobre os cantadores José Criança e Adelino, que encontrara­m ali. No mesmo município gravaram cantigas de roda. Numa das anotações, informase que “as meninas Aurora Santos e Maria Dalva que fizeram os solos na cantiga Flor, linda Flor”. Ali ainda fizeram filmagens de vaqueiros na pega de bois.

Já em Pombal, também na Paraíba, em abril, a missão teve dias produtivos com gravações de 12 cocos, 99 melodias, modinhas, reis do Congo, chulas e toadas. Saia fez pesquisas orais sobre reis do Congo —um bailado dramático de origem religiosa trazido pelos escravizad­os do país africano— e anotou dados dos informante­s. Numa das filmagens dessa dança, o maestro Martin Braunwiese­r aparece no centro da roda segurando o microfone.

Interessad­o também em aspectos da arquitetur­a, que era sua profissão, Saia fez esboços e desenhos nas cadernetas e anotou detalhes sobre as construçõe­s, como na pequena Areal, ainda na Paraíba, em 12 de abril. A comitiva passou a Semana Santa em Sousa (PB) e fez registros de toadas e reisados. Nessa cidade fez ainda pesquisas sobre improvisos e desafios.

Em 6 de maio, em Alagoa Nova (PB), Saia anotou na caderneta: “Às 9h30 saímos atrás de um catimbozei­ro chamado Zé Hilário, morador no Caxingá (5 léguas pras bandas do Cariri). Passamos em Alagoa de Roça e aí encontramo­s um aleijado que, se curando com Zé Hilário, aprendeu as linhas dele”. Saia lamentou, porém, que não haviam trazido o microfone e mandou buscá-lo. “Agora são 3h10 da tarde e estamos em Alagoa Nova com o aleijado para gravar sem almoçar até agora”, escreveu.

Em algumas situações, quando não conseguiam gravar por problemas técnicos, o maestro escrevia a partitura das músicas para não perder o registro. Como aconteceu, por exemplo, em Alagoa Grande e Guarabira, ambas na Paraíba. “Não levantei cedo”, escreveu Saia. “O pessoal da Barca estava no hotel às 7h30 e se verificou ser impossível colher eles gravando. O Martin está escrevendo a música do velho”.

Em Bahia da Traição (PB), visitaram um aldeamento indígena e observaram que, em roda, os índios dançavam, enquanto na casa ao lado, outros trabalhava­m com a farinha de mandioca. No dia seguinte, em Mamanguape (PB), Saia registrou notas sobre a arquitetur­a local e voltaram para João Pessoa.

Na capital, ele produziu um extenso relatório sobre a arquitetur­a colonial da Paraíba, com dados colhidos por eles e outros fornecidos pelo escritor e sociólogo Gilberto Freyre, com quem havia se encontrado quando da passagem por Recife.

Os trabalhos seguiram não só voltados a música, dança e arquitetur­a, mas abrangendo outras manifestaç­ões culturais. Como aconteceu, por exemplo, em Torrelândi­a (PB), quando foram registrada­s “adivinhaçõ­es narradas por Luiz Gonzaga Ângelo”, anotadas na caderneta. Ali anotaram também “estória do Rei Leão”, “estórias de Dom Carlos de Aquino” e “estórias de Onça e Porco”.

De quando em quando, Saia deixava a caravana por alguns dias e retornava à capital mais próxima para enviar o material recolhido e os filmes para São Paulo.

Como aconteceu em 26 de maio, quando mandou uma remessa para o Departamen­to de Cultura, com um bilhete: “Aí vai nova remessa de material. A caixa que vai com indicação é para o Mário. Como você pode verificar a colheita de peças aqui na Paraíba foi menor do que a feita em Recife. É que visávamos, ou milhor (sic), pudemos mais encher discos de música e o restante do trabalho naturalmen­te ficou prejudicad­o”.

Em fins de maio, a missão se preparava para seguir ao Piauí e Maranhão. Atravessou algumas cidades do Ceará e a 6 de junho chegou a Jaicós (PI). Ali teve uma parada prolongada em função de um conserto no radiador do caminhão em que viajava. Os integrante­s da caravana registrara­m ali hábitos alimentare­s e em 11 de junho gravaram bumbameu-boi em Valença (PI).

A chegada ao Maranhão se deu em 15 de junho. Na capital, São Luís, gravaram novamente bumba-meu-boi e tomaram nota sobre a arquitetur­a do Convento de Santa Tereza. Fizeram filmagens de Tambor de Mina no bairro de João Paulo e de Carimbó, na qual uma mulher dança com chapéu, acompanhad­a de berimbau e canto, numa versão diferente da dança praticada no Pará, como observaram na caderneta.

A chegada em Belém (PA) aconteceu em 21 de junho. Visitaram a Prefeitura, o Museu Goeldi e tomaram notas sobre pajelança. Gravaram melodias de boi-bumbá. A essas alturas, as coisas não iam bem em São Paulo e isso se refletia nos trabalhos da missão.

Mário de Andrade enfrentava dificuldad­es no Departamen­to de Cultura, desde maio, com a chegada do novo intervento­r em São Paulo, Adhemar de Barros, que nomeara Prestes Maia para o lugar do prefeito Fabio Prado, a quem o modernista era ligado. Crítico ferrenho do Estado Novo implantado por Getúlio Vargas, Mário passou a ser visto pelo novo prefeito como perdulário e foi obrigado a deixar o cargo em plena viagem da missão.

Isso explica porque a comitiva atravessou o Piauí e Ceará quase sem fazer registros. Com poucos recursos, a estada no Maranhão também foi abreviada para só uma semana. Em Belém, ficaram até 7 de julho, com uma produtivid­ade bem menor da alcançada em outros lugares.

A volta aconteceu por meio de uma longa viagem de navio, com a chegada ao porto de Santos em 19 de julho. O tesouro que traziam já não interessav­a tanto aos que estavam no poder e o seu destino foi praticamen­te o esquecimen­to.

Por muito tempo as autoridade­s não compreende­ram aquilo que Mário apregoava. Nas palavras da professora Flávia Camargo Toni, o modernista achava que era preciso conhecer para preservar e preservar

 para entender o Brasil.

 ?? Ilustração Angelo Abu Ilustrador; adaptou e ilustrou “Macunaíma” em quadrinhos (Ed. Peirópolis), em parceria com Dan X ??
Ilustração Angelo Abu Ilustrador; adaptou e ilustrou “Macunaíma” em quadrinhos (Ed. Peirópolis), em parceria com Dan X
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