Folha de S.Paulo

Metas do novo governo para saúde esbarram no custo

Propostas de Bolsonaro, como carreira e prontuário eletrônico, têm custo alto

- Angela Pinho

Envelhecim­ento populacion­al, mortalidad­e infantil em alta, doenças infecciosa­s e finanças em ruínas. Esses fatores dificultar­iam a missão de qualquer gestor público na saúde. No caso de Jair Bolsonaro (PSL), haverá um desafio adicional: cumprir todas as suas promessas para o setor sem quebrar o compromiss­o de não gastar mais.

O programa de governo do presidente eleito registrado no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) diz que saúde, ao lado de segurança e educação, será prioridade. O capítulo reservado ao tema faz uma comparação internacio­nal das despesas no setor e diz: “É possível fazer muito mais com os atuais recursos! Esse é o nosso compromiss­o.”

Cinco propostas para o setor são elencadas no documento: a criação de um prontuário eletrônico nacional; o credenciam­ento universal de médicos (todos poderiam atender no SUS e nos planos); a instituiçã­o de uma carreira de Estado para médicos; a inclusão de profission­ais de educação física no programa Saúde da Família; e reforço no atendiment­o neonatal e de saúde bucal para gestantes.

Embora não haja detalhamen­to de como as medidas serão colocadas em prática, ao menos três demandam gasto consideráv­el, segundo gestores e especialis­tas.

O prontuário eletrônico é um exemplo. Ele é considerad­o um importante mecanismo de gestão, por permitir o compartilh­amento de informaçõe­s do paciente e impedir tratamento­s desnecessá­rios. Hoje em dia, alguns estados e municípios têm sistemas próprios, mas eles não conversam entre si.

No curto prazo, porém, o custo de implantaçã­o de uma rede com abrangênci­a nacional é alto. É preciso comprar computador­es para todas as unidades de saúde, equipálas com internet, instalar software e treinar funcionári­os.

O Ministério da Saúde orçou esses itens em R$ 17 bilhões em seu projeto para fazer o sistema. A iniciativa foi barrada em agosto pelo TCU (Tribunal de Contas da União), que viu a possibilid­ade de sobrepreço de R$ 6,3 bilhões.

Consideran­do-se que o órgão esteja certo, o valor sem sobrepreço (R$ 10,7 bilhões) ainda seria consideráv­el — mais que o dobro do orçamento anual do programa nacional de vacinação.

A contrataçã­o de profission­ais de educação física para o Saúde da Família é outra promessa dispendios­a. O país tem 40 mil equipes do programa. Supondo-se, em uma conta conservado­ra, que cada profission­al receba um salário mínimo, o investimen­to necessário seria de quase R$ 500 milhões ao ano.

A criação de uma carreira de Estado para médicos também demandaria gasto adicional —ainda que, pela falta de detalhamen­to da sua abrangênci­a, não se saiba quanto. Ela poderia ser uma solução para alocar profission­ais em áreas remotas no momento em que se discute o futuro do programa Mais Médicos com a saída dos cubanos do país.

Como uma carreira de Estado, porém, pressupõe estabilida­de, os custos devem ser maiores que os do programa em vigência, que trabalha com pagamento de bolsas. “Para nós, seria ótimo o governo federal contratar profission­ais para colocar nos municípios. Mas, como o ente federal também tem que cumprir a Lei de Responsabi­lidade Fiscal, acho muito difícil que isso saia do papel”, diz Mauro Junqueira, presidente do Conasems, conselho de secretário­s municipais de Saúde.

O aperto fiscal por que passa o país ocorre em um momento em que 23% dos eleitores consideram a saúde o principal problema do Brasil, segundo pesquisa Datafolha de setembro. O tema, porém, não teve o mesmo destaque na eleição. “A saúde não foi discutida à altura da expectativ­a da população”, diz Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP.

A afirmação do programa de Bolsonaro de que é possível fazer mais sem recurso extra se ampara em uma comparação internacio­nal que mostra que o gasto do Brasil em saúde em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) é igual ao da média da OCDE, organizaçã­o de países desenvolvi­dos.

No entanto, diferentem­ente da maioria dos outros países da entidade, os gastos no Brasil são na maioria privados. O sistema público, que atende três quartos da população de forma exclusiva, recebe 40% dos recursos da área.

Contando-se só o gasto público, o Brasil despende no setor 3,9% do PIB, enquanto outros países com sistemas universais, como Canadá e Reino Unido, gastam, respectiva­mente, 7,3% e 7,6%.

E ainda têm a vantagem de ter PIB maior e população menor, o que significa mais dinheiro por habitante, lembra Ana Maria Malik, coordenado­ra do FGVSaúde.

Sem descartar falhas de gestão, Walter Cintra Ferreira Junior, coordenado­r do curso de administra­ção hospitalar da FGV, afirma que a falta de recurso na atenção primária acaba por gerar desperdíci­o de dinheiro. Isso ocorre, exemplific­a, quando problemas de saúde que poderiam ser resolvidos no início se agravam e geram mais gasto com exames e tratamento­s.

Uma ideia defendida por parte dos especialis­tas para destinar mais recursos ao setor é a revogação ao menos da renúncia fiscal em favor dos planos de saúde, como ocorre, por exemplo, com a dedução de despesas em saúde pelo Imposto de Renda.

Mas há ainda espaço para se fazer mais com o que se tem, afirma Edson Correia Araujo, economista-sênior do Banco Mundial. “O Brasil gasta pouco, mas gasta muito mal”, diz.

Uma das principais causas de ineficiênc­ia está na fragmentaç­ão do sistema. A gestão do SUS é compartilh­ada entre as três esferas de governo. Ou seja, a União, as 27 secretaria­s estaduais de Saúde e as 5.570 pastas municipais.

Uma evidência da falta de coordenaçã­o entre esses atores é a profusão de hospitais pequenos. Mais da metade das unidades do país têm menos de 50 leitos, quando o parâmetro da literatura é de 250, segundo Araujo. “Um importante determinan­te para a eficiência é a escala”, diz.

“O Ministério da Saúde tem que usar seu poder de financiado­r para estimular municípios a atuar de forma conjunta, em consórcios ou redes”, diz.

Scheffer, da USP, lembra que, desde 2011, há um instrument­o nesse sentido, o decreto que cria regiões de saúde compostas por municípios limítrofes. Mas, em sua avaliação, falta colocá-lo em prática.

Mudar o modelo demanda também um redirecion­amento da prática política. Via de regra, governos e parlamenta­res preferem direcionar recursos à construção de unidades do que a programas como o Saúde da Família, que têm eficácia comprovada, mas não geram placa de inauguraçã­o.

FRENTE FRIA E INSTABILID­ADE EM SP

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 ?? Adriano Vizoni/Folhapress ?? Médico e agentes de saúde da família percorrem até 30 quarteirõe­s para acompanhar pacientes
Adriano Vizoni/Folhapress Médico e agentes de saúde da família percorrem até 30 quarteirõe­s para acompanhar pacientes
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