Metas do novo governo para saúde esbarram no custo
Propostas de Bolsonaro, como carreira e prontuário eletrônico, têm custo alto
Envelhecimento populacional, mortalidade infantil em alta, doenças infecciosas e finanças em ruínas. Esses fatores dificultariam a missão de qualquer gestor público na saúde. No caso de Jair Bolsonaro (PSL), haverá um desafio adicional: cumprir todas as suas promessas para o setor sem quebrar o compromisso de não gastar mais.
O programa de governo do presidente eleito registrado no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) diz que saúde, ao lado de segurança e educação, será prioridade. O capítulo reservado ao tema faz uma comparação internacional das despesas no setor e diz: “É possível fazer muito mais com os atuais recursos! Esse é o nosso compromisso.”
Cinco propostas para o setor são elencadas no documento: a criação de um prontuário eletrônico nacional; o credenciamento universal de médicos (todos poderiam atender no SUS e nos planos); a instituição de uma carreira de Estado para médicos; a inclusão de profissionais de educação física no programa Saúde da Família; e reforço no atendimento neonatal e de saúde bucal para gestantes.
Embora não haja detalhamento de como as medidas serão colocadas em prática, ao menos três demandam gasto considerável, segundo gestores e especialistas.
O prontuário eletrônico é um exemplo. Ele é considerado um importante mecanismo de gestão, por permitir o compartilhamento de informações do paciente e impedir tratamentos desnecessários. Hoje em dia, alguns estados e municípios têm sistemas próprios, mas eles não conversam entre si.
No curto prazo, porém, o custo de implantação de uma rede com abrangência nacional é alto. É preciso comprar computadores para todas as unidades de saúde, equipálas com internet, instalar software e treinar funcionários.
O Ministério da Saúde orçou esses itens em R$ 17 bilhões em seu projeto para fazer o sistema. A iniciativa foi barrada em agosto pelo TCU (Tribunal de Contas da União), que viu a possibilidade de sobrepreço de R$ 6,3 bilhões.
Considerando-se que o órgão esteja certo, o valor sem sobrepreço (R$ 10,7 bilhões) ainda seria considerável — mais que o dobro do orçamento anual do programa nacional de vacinação.
A contratação de profissionais de educação física para o Saúde da Família é outra promessa dispendiosa. O país tem 40 mil equipes do programa. Supondo-se, em uma conta conservadora, que cada profissional receba um salário mínimo, o investimento necessário seria de quase R$ 500 milhões ao ano.
A criação de uma carreira de Estado para médicos também demandaria gasto adicional —ainda que, pela falta de detalhamento da sua abrangência, não se saiba quanto. Ela poderia ser uma solução para alocar profissionais em áreas remotas no momento em que se discute o futuro do programa Mais Médicos com a saída dos cubanos do país.
Como uma carreira de Estado, porém, pressupõe estabilidade, os custos devem ser maiores que os do programa em vigência, que trabalha com pagamento de bolsas. “Para nós, seria ótimo o governo federal contratar profissionais para colocar nos municípios. Mas, como o ente federal também tem que cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal, acho muito difícil que isso saia do papel”, diz Mauro Junqueira, presidente do Conasems, conselho de secretários municipais de Saúde.
O aperto fiscal por que passa o país ocorre em um momento em que 23% dos eleitores consideram a saúde o principal problema do Brasil, segundo pesquisa Datafolha de setembro. O tema, porém, não teve o mesmo destaque na eleição. “A saúde não foi discutida à altura da expectativa da população”, diz Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP.
A afirmação do programa de Bolsonaro de que é possível fazer mais sem recurso extra se ampara em uma comparação internacional que mostra que o gasto do Brasil em saúde em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) é igual ao da média da OCDE, organização de países desenvolvidos.
No entanto, diferentemente da maioria dos outros países da entidade, os gastos no Brasil são na maioria privados. O sistema público, que atende três quartos da população de forma exclusiva, recebe 40% dos recursos da área.
Contando-se só o gasto público, o Brasil despende no setor 3,9% do PIB, enquanto outros países com sistemas universais, como Canadá e Reino Unido, gastam, respectivamente, 7,3% e 7,6%.
E ainda têm a vantagem de ter PIB maior e população menor, o que significa mais dinheiro por habitante, lembra Ana Maria Malik, coordenadora do FGVSaúde.
Sem descartar falhas de gestão, Walter Cintra Ferreira Junior, coordenador do curso de administração hospitalar da FGV, afirma que a falta de recurso na atenção primária acaba por gerar desperdício de dinheiro. Isso ocorre, exemplifica, quando problemas de saúde que poderiam ser resolvidos no início se agravam e geram mais gasto com exames e tratamentos.
Uma ideia defendida por parte dos especialistas para destinar mais recursos ao setor é a revogação ao menos da renúncia fiscal em favor dos planos de saúde, como ocorre, por exemplo, com a dedução de despesas em saúde pelo Imposto de Renda.
Mas há ainda espaço para se fazer mais com o que se tem, afirma Edson Correia Araujo, economista-sênior do Banco Mundial. “O Brasil gasta pouco, mas gasta muito mal”, diz.
Uma das principais causas de ineficiência está na fragmentação do sistema. A gestão do SUS é compartilhada entre as três esferas de governo. Ou seja, a União, as 27 secretarias estaduais de Saúde e as 5.570 pastas municipais.
Uma evidência da falta de coordenação entre esses atores é a profusão de hospitais pequenos. Mais da metade das unidades do país têm menos de 50 leitos, quando o parâmetro da literatura é de 250, segundo Araujo. “Um importante determinante para a eficiência é a escala”, diz.
“O Ministério da Saúde tem que usar seu poder de financiador para estimular municípios a atuar de forma conjunta, em consórcios ou redes”, diz.
Scheffer, da USP, lembra que, desde 2011, há um instrumento nesse sentido, o decreto que cria regiões de saúde compostas por municípios limítrofes. Mas, em sua avaliação, falta colocá-lo em prática.
Mudar o modelo demanda também um redirecionamento da prática política. Via de regra, governos e parlamentares preferem direcionar recursos à construção de unidades do que a programas como o Saúde da Família, que têm eficácia comprovada, mas não geram placa de inauguração.
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