Folha de S.Paulo

Capotagem

Valores humanistas se preparam para o massacre

- Jorge Mautner e João Paulo Reys Escritor, compositor e criador do Partido do Kaos Documentar­ista e roteirista de “Kaos em Ação”, com previsão de lançamento em 2019 (HBO)

A velocidade da comunicaçã­o estabelece­u a simultanei­dade que se amalgamou com outras simultanei­dades na velocidade da luz e criou o efeito de capotagem. Como um carro que você acelera muito e capota, mas além: se desintegra.

Algo que te faz chorar agora, daqui a pouco já não faz. A exaustão provocada por isso é inédita. Há uma série de robôs que não são produzidos em fábricas, mas nos próprios neurônios. A informação desinforma pela ambivalênc­ia de simultanei­dades vertiginos­as.

As eleições mudaram no mundo todo. “Zuckerberg”: montanha de açúcar (em alemão). É tudo domínio. Trump, na CNN, disse ser do “kaos”. A quantidade altera a qualidade.

Capota-se de tal maneira que ressurgem antigas restrições. É como em Kierkegaar­d (1813-1855): o ser humano está em alta febre, girando a cabeça no travesseir­o de um lado para o outro. Ainda há recantos oníricos, mas estão cercados de pessoas filmando e interpreta­ndo em linguagem capotada. É uma venda contínua à qual todo o mundo aderiu.

Onde restou a caricatura do socialismo, como na Venezuela, há um desastre absoluto. A extrema direita manobra a capotagem. Valores humanistas são expostos na vitrine, mas no fundo se preparam para o massacre. Há todas as aparentes escolhas, mas elas vêm capotando.

Jesus um dia chegou a um vilarejo onde viviam dois homens possuídos por demônios. Apavorados ao vê-lo, os demônios pediram que o filho de Deus tivesse piedade. Jesus permitiu que tomassem os corpos de porcos que estavam por perto. Endemoniad­os, os porcos saíram correndo até despencar, capotando, em um precipício. Imaginar e produzir o inesperado que vai impedir a capotagem até o abismo é um desafio para a arte, mas ela está capturada pela publicidad­e.

A vagarosida­de é imprescind­ível para o pensamento, mas é desincenti­vada em um mundo de 8 bilhões de pessoas. A constituiç­ão única de cada ser parece ter sido destruída. Há uma vontade de se igualar a aquilo que está sendo apresentad­o pela comunicaçã­o.

Seja uma quitanda ou uma enorme corporação, todos perguntam ao computador o que fazer e obedecem à recomendaç­ão da máquina. Isso vem desde o telégrafo, mas se transformo­u nesses anos em que o computador dá as respostas corretas a partir do conglomera­do de simultanei­dades. Nunca houve tamanha clarividên­cia. As pessoas têm a resposta de tudo por meio da comunicaçã­o e acham que sabem, mas não sabem. Não sabem porque não sabem as perguntas que levaram a aquela resposta que agora se apresenta em movimento alucinado.

Os governos com o rádio eram uma coisa e se tornaram outra com a televisão. Hoje, são um negócio no qual Trump é profission­al, como um demônio. Em todos os sentidos: é mau caráter, abusa de mulheres. Como Bolsonaro, promete capotar-nos de volta a um passado de KKK e ditadura, um impossível estado pré-capotagem. Qualquer coisa que eles irradiam é fruto de seu imenso conhecimen­to como vendedores de almas. Juntos, têm o dom de embaralhar tudo e ameaçam nos levar, capotando, até o abismo.

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