Folha de S.Paulo

O ministério se revela nas manobras

Como sempre acontece, a dança de nomes mostra a alma da formação da equipe de um presidente

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a”

Em setembro acreditava-se que o médico Henrique Prata, diretor do Hospital do Câncer de Barretos, podia ser o ministro da Saúde num eventual governo de Jair Bolsonaro. Outra hipótese seria a ida do deputado do deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS).

Nos dois meses seguintes pelo menos dois renomados médicos passaram pelo balcão de apostas e o jogo fechou com a nomeação de Mandetta. Há dois anos, o cirurgião Raul Cutait esteve com um pé na pasta, mas Michel Temer nomeou o deputado Ricardo Barros (PP-PR).

O jogo do ministério, com seus balões de ensaio e boatos, é um divertimen­to que acaba no dia em que o Diário Oficial publica a lista dos nomeados. Contudo, os movimentos que ocorrem nos bastidores acabam revelando a alma do governo que se forma. Descontada a maneira silenciosa e cirúrgica com que Paulo Guedes forma sua equipe na área econômica, até agora a principal decisão de Bolsonaro foi a transferên­cia do general da reserva Augusto Heleno para o Gabinete de Segurança Institucio­nal. Ele estava designado para a Defesa e foi deslocado pouco depois da escolha de Sergio Moro para a Justiça. Trocou um ministério com gabinete fora do Planalto por outro a poucos metros da sala do presidente.

O Ministério da Educação de Bolsonaro tornou-se uma grelha. Mozart Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi vetado pela bancada evangélica sem ter sido convidado. O procurador Guilherme Schelb, da simpatia dos pastores, viuse frito. Ao fim do dia foi escolhido o professor Ricardo Vélez Rodríguez, da Federal de Juiz de Fora, que lecionou na Escola de Comando e EstadoMaio­r do Exército. Do episódio resulta que Bolsonaro colocou no Ministério da Educação uma pessoa com quem nunca trocou duas palavras ou leu duas páginas.

A formação de um governo obedece a uma lógica própria. Um terço dos ministros são pessoas que o presidente queria colocar exatamente onde ficaram, como Paulo Guedes. No segundo terço o escolhido vai para a equipe, mas cai em outro lugar, como Augusto Heleno. No terceiro, entram pessoas que o presidente mal conhecia.

A mecânica da formação da equipe acaba sendo tão significat­iva quanto as escolhas. Temer disse que nomearia notáveis. Armou sua equipe pelo velho método e estabelece­u uma marca na história universal: dois de seus ministros acabaram na cadeia (Geddel Vieira Lima e Henrique Alves). Outros dois tiveram os pais e padrinhos políticos encarcerad­os (Helder Barbalho e Leonardo Picciani). No governo Dilma, Joaquim Levy pensou que havia sido escolhido para o Ministério da Fazenda, mas caiu num comissaria­do, do qual fugiu.

Na competição que produz ministros, às vezes ganham relevo aqueles que decidem não sê-lo. Ilan Goldfajn deixou o Banco Central. Já o nome do general da reserva Oswaldo Ferreira para a área de infraestru­tura era pedra cantada. Ele participav­a do planejamen­to da campanha de Bolsonaro e chegou a dar entrevista­s sobre projetos. Decidiu ficar fora do governo.

O ‘imprevisto’ de Moro

O futuro ministro Sergio Moro defendeu a delegada Erika Marena, coordenado­ra da “Operação Ouvidos Moucos”, que em 2017 resultou na prisão do reitor Luiz Carlos Cancellier, da Universida­de Federal de Santa Catarina. Levado para uma penitenciá­ria, ele vestiu uniforme laranja, foi algemado e lá dormiu uma noite. Sua prisão foi pedida pela delegada, e a Justiça, que a autorizou, suspendeu-a no dia seguinte, pois não viu no pedido da delegada “fatos específico­s dos quais se possa defluir a existência de ameaça à investigaç­ão.”

Livre, o professor matouse, atirando-se do alto de um shopping de Florianópo­lis.

Quando a “Ouvidos Moucos” foi espetacula­rizada, Cancellier e outros professore­s eram acusados de terem desviado R$ 80 milhões de um programa da UFSC. Essa informação revelou-se falsa e foi divulgada antes mesmo que Cancellier fosse ouvido. A cifra referia-se à verba total do programa.

A delegada Erika Marena é considerad­a uma policial competente e teve um relevante desempenho na fase inicial e decisiva da “Operação Lava Jato”. Ao informar que ela assumiria o Departamen­to de Recuperaçã­o de Ativos e Cooperação Jurídica Internacio­nal da Polícia Federal, Moro tratou do caso de Cancellier e disse o seguinte:

“Foi uma tragédia, algo trágico, e toda a solidaried­ade aos familiares do reitor, mas foi um infortúnio imprevisto na investigaç­ão. A delegada não tem responsabi­lidade quanto a isso”.

Falta definir “infortúnio imprevisto na investigaç­ão”. Ou, pelo menos, quais são os infortúnio­s que as investigaç­ões podem prever. Prisões desnecessá­rias, humilhaçõe­s e espetacula­rizações talvez estejam entre eles. Outro espetáculo

Há um ano, noutro caso espetacula­r, o empresário Ricardo Saud, da J&F dos irmãos Batista, contou que sua organizaçã­o corrompia políticos e esfriava as propinas usando mais de cem escritório­s de advocacia que simulavam serviços. Entre os políticos estava o deputado Fábio Faria e entre os escritório­s, o do advogado Erick Pereira. (Na sua delação, Saud chamou-o de Erick Faria.)

Passou-se um ano, a procurador­a-geral Raquel Dodge chamou Saud de “pretenso colaborado­r” e pediu o arquivamen­to do processo porque “não foi possível colher nenhum elemento probatório que demonstras­se que o investigad­o (deputado Fábio Faria) cometeu os referidos delitos” e que “a documentaç­ão juntada aos autos pelo colaborado­r em nada demonstra que os eventos que narra ocorreram”. O pedido da procurador­a foi atendido pela ministra Rosa Weber, do STF. Quanto ao advogado Erick Pereira, ele juntou aos autos as provas dos serviços prestados pelo escritório.

O distinto público foi enganado duas vezes, primeiro pela JBS fazendo-se passar por uma “campeã nacional”. Depois pelos seus donos e diretores enfiando cascalhos nas suas pretensas delações.

Beijo da morte

Na terça-feira, um veterano parlamenta­r ouviu um colega do PSOL saudando a possível escolha de Mozart Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, para o Ministério da Educação. Foi rápido:

“Já era.”

Fogo amigo

Durante a campanha o general Hamilton Mourão contou que estava lendo uma biografia de seu colega “Stonewall” Jackson. Ele foi um dos maiores generais do Sul rebelde na Guerra da Secessão (1861-1865). Ganhou o apelido de “Muralha” ao conter o inimigo, decidindo a primeira grande batalha do conflito. Era um tipo estranho. Cristão fervoroso, lutava pelo Sul, mas condenava a escravidão.

A vida de “Stonewall” pode inspirar Mourão. Primeiro, porque ele falava pouco e escondia tudo. Sempre ia para a linha de frente, mas numa noite tomou três tiros de sua própria tropa durante uma patrulha noturna.

“Stonewall” tornou-se a mais famosa vítima de fogo amigo das forças militares americanas.

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Juliana Freire

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