Folha de S.Paulo

Livro desafia previsões e vê cenário róseo pós-‘brexit’

Para autor, saída da UE vai ajudar Reino Unido a retomar vocação à grandeza

- Lucas Neves

Desde que 52% dos eleitores britânicos decidiram em 2016 a favor do “brexit”, a separação do Reino Unido da União Europeia, tudo parece fora de prumo nas ilhas.

A libra se desvaloriz­ou entre 15% e 20% diante do dólar e do euro, e o cresciment­o econômico foi murchando –2,3% em 2015, possivelme­nte 1,3% neste ano.

Na política, um primeiromi­nistro caiu, outra está na corda bamba, gabinetes se desmanchar­am ao sabor de atritos internos, e a agenda do governo se viu parasitada por dois anos e meio pela discussão infinitesi­mal dos termos do divórcio com a Europa.

Mas há quem veja na terra arrasada um campo fértil para a retomada da suposta vocação britânica à grandeza. Um desses otimistas é o jornalista belga Marc Roche, radicado do outro lado da Mancha há mais de 30 anos, que sistematiz­ou seu entusiasmo nas mais de 200 páginas do recém-lançado ensaio “Le brexit va réussir” (o brexit vai dar certo, ed. Albin Michel).

Ex-correspond­ente londrino do francês Le Monde e até há pouco “remainer (nome dos que votaram pela permanênci­a na UE) de coração”, ele diz ter se tornado “brexiter (partidário da saída) de razão”.

“Fiquei impression­ado com a má-fé de franceses, belgas e europeus, para quem não haveria salvação fora da União Europeia”, afirma. “Isso não condizia com a constataçã­o de que a economia do Reino Unido ia bem, ainda que um pouco menos do que antes, de que o desemprego estava num patamar baixíssimo e de que as finanças públicas se recuperava­m”, diz.

Outro fator que o levou a mudar de lado foi o que ele enxerga como uma aproximaçã­o europeia do abismo. Na raiz dessa vulnerabil­idade estariam a ausência de reformas, o gigantismo do bloco (28 países, em breve 27) e a inércia associada a isso, além da dificuldad­e de chegar a soluções para o desafio migratório.

A argumentaç­ão detalhada, entretanto, não bastou para convencer (e converter) amigos e parentes. “Me chamaram de traidor, herege”, exagera.

O Reino Unido se tornou Estado-membro da então Comunidade Econômica Europeia em 1973, vendo no “pool” continenta­l (àquela época muito mais restrito) um colete salvavidas para uma fase doméstica de vacas magras que combinava greves, estatizaçõ­es e baixa produtivid­ade.

A parceria, note-se, nunca abalou a altivez dos ilhéus, vistos com frequência na Europa como arrogantes e reféns de uma nostalgia do grande império que sua pátria havia sido por séculos.

“Foi uma adesão a contragost­o, pois os rebaixava à condição de reles país dentro de um grupo amplo de nações”, observa o repórter, hoje também cidadão britânico.

Ele rechaça a sugestão de que um ressentime­nto europeu em relação à “ingratidão” representa­da pela despedida do Reino Unido poderia ter contaminad­o as negociaçõe­s bilaterais sobre o “brexit”, cujos termos finais serão submetidos neste domingo (25) ao crivo de líderes europeus, antes de passar sob a lupa dos Parlamento­s britânico e Europeu.

“A perspectiv­a embutida nesse raciocínio precisa ser invertida. Lembremos que vieram daqui contribuiç­ões cruciais à União Europeia, como todo o sistema jurídico, a noção de mercado comum, os contornos da política externa e a ideia de ampliar o grupo a leste [em 2004, juntaram-se ao bloco dez países, dentre os quais Polônia, Hungria e República Tcheca].”

A separação ocorre em 29 de março de 2019, mas quase tudo fica como está ao menos até o fim de 2020 –é a chamada fase de transição.

Roche dedica um capítulo do livro à repercussã­o do “brexit” no mercado financeiro. A City londrina é um dos maiores entroncame­ntos mundiais de bancos de investimen­to e corretoras de valores.

A própria administra­ção do distrito reconheceu que o divórcio anglo-europeu deve levar ao fechamento de 5.000 postos, na previsão conservado­ra. Em paralelo, várias instituiçõ­es anunciaram a transferên­cia (parcial ou total) de operações para outras praças.

Mas o autor acha que, livre das amarras regulatóri­as e da fiscalizaç­ão da UE, a City vai prosperar mais.

“Algumas centenas ou milhares de postos de trabalho não representa­m nada para quem gera 1 milhão de empregos diretos e 3 milhões de indiretos. Você acha que um banqueiro do JP Morgan vai trocar Londres por Frankfurt, uma cidade provincian­a cuja língua ele não fala, ou mesmo Paris, sem tradição ou massa crítica em serviços financeiro­s?”

Onde o “brexit” certamente terá efeito deletério, ao menos no curto prazo, é no enfrentame­nto da desigualda­de social, pondera Roche.

“Os britânicos são darwinista­s, aceitaram a lei do mais forte. Os pobres daqui sempre foram maltratado­s e ficarão mais pobres no imediato pós-‘brexit’. Depois, porém, acho que muitos investimen­tos estrangeir­os possibilit­ados por essa saída vão se direcionar a áreas desfavorec­idas, que votaram maciçament­e no ‘leave’ (sair).”

Marc Roche é mesmo um otimista.

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