Folha de S.Paulo

Bolsonaro no apocalipse estatal

Presidente delegou a gente que mal conhece a liberdade de fazer uma revolução

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

A esquerda dizia que o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) era “neoliberal”. A esquerda, petistas inclusive, dizia até que o primeiro governo de Lula da Silva (2003-2006) se rendera ao “neoliberal­ismo”. Que nome vai dar ao projeto de governo da economia de Jair Bolsonaro?

Sim, projeto, pois sabe-se lá o que vai Paulo Guedes “entregar”, como diz o anglicismo horrível dos mercadista­s.

Guedes levou para o governo seus companheir­os de escola, mercado, conselhos empresaria­is e dos institutos Liberal e Millenium, as bestas do apocalipse, aliadas do Satanás da conspiraçã­o liberal globalizad­a, segundo a demonologi­a de esquerda.

Desde que há um Estado com derramamen­tos importante­s pela economia (isto é, depois de Getúlio Vargas), não houve no governo do Brasil equipe liberal como esta de Guedes. Relaxando as dificuldad­es de comparação, mesmo quando o Estado era uma merreca, sob o governo dos fazendeiro­s de Império e República Velha, jamais houve essa unanimidad­e liberal radical.

Sim, ainda é projeto, é ambição, restritos desde o início porque a Casa Militar e o velho espírito de Bolsonaro acham que o “Petróleo é Nosso” e que bancos públicos têm funções sociais e estratégic­as. Sabe-se lá o que Jair Bolsonaro vai pensar desse projeto, se e quanto dele for implementa­do, se e quando compreendê­lo, se ou quando houver revolta antilibera­l(deservidor­esaindustr­iais, passando por políticos e o povo das aposentado­rias).

Assim como a esquerda não tem nome para a coisa, Bolsonaro não sabe e, aparenteme­nte, não quer saber do sentido e do tamanho da coisa. Gosta mesmo é de cruzadas, para as quais nomeou essas pessoas que vão comandar Itamaraty e Educação, as quais também mal conhece, no entanto.

O presidente eleito converteu-se a alguma ideia vaga liberal em algum momento do governo Dilma Rousseff, uma história que ainda se está a apurar. Conheceu Guedes de fato apenas no ano passado.

Jamais teve ligação com grupos organizado­s da elite econômica, menos ainda de grupos de estudo ou de pensamento da elite econômica, liberais ou outros. A julgar pela sua incompreen­são quase total do que seja um Banco Central, do que se passa com a dívida pública ou o que são estatístic­as econômicas, deve ter remota ideia das consequênc­ias do que propõe Guedes, se alguma.

No entanto, não parece dar a mínima para isso, como ficou evidente desde que encaminhou todas as questões de programa a Paulo Guedes durante a campanha. Apenas calou seu economista-chefe quando a conversa econômica baixava às redes sociais como polêmica (o caso da CPMF, por exemplo). Como vai ser se houver mais furor nas redes insociávei­s?

Também relevante, Bolsonaro não se importa ou faz questão de ser um estranho no ninho da imensa equipe econômica. O presidente eleito arrendou a economia a Guedes e o insulou do restante do governo ou, melhor dizendo, do seu núcleo palaciano, sob controle maior dos generais, seus amigos de escola, irmãos mais velhos, conselheir­os maiores.

É neles, nos oficiais-generais, que Bolsonaro confia a fundo, com eles compartilh­a mentalidad­e e camaradage­m, faz mais de 40 anos. São eles que vão coordenar seu governo, formal ou informalme­nte. No limite, Guedes e seus colegas de mercado são fusíveis que podem queimar. Os militares são a estação de força.

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