Folha de S.Paulo

Sem cubanos e violentas, favelas do Rio sofrem para atrair médicos brasileiro­s

Conflitos recorrente­s são desafio para governo federal repor profission­ais com a saída dos estrangeir­os

- Júlia Barbon e Lucas Vettorazzo

Nas paredes e vidraças, 12 marcas de bala. Na entrada, uma sala de espera vazia, transferid­a para um auditório escondido da linha de tiro. Nos fundos, uma porta de emergência, construída para facilitar a fuga em caso de confrontos armados.

Pode parecer um bunker de guerra, mas é a clínica da família Ministro Adib Jatene. Ela fica no meio do complexo de favelas da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, de frente para uma rua com conflitos recorrente­s entre policiais e traficante­s de drogas.

Sete dias foi quanto uma médica pernambuca­na aguentou ali antes de desistir do emprego em 2017. Desde o início do ano, há três vagas para brasileiro­s no programa Mais Médicos, de um total de 12, sem reposição por falta de interesse.

O risco de ser atingido por disparos que afugenta os médicos brasileiro­s das unidades de saúde em favelas do Rio é mais um desafio do governo federal desde a semana passada —quando os médicos cubanos começaram a deixar o Brasil após o fim do convênio entre os dois países.

Eram muitos deles que ocupavam de forma duradoura esses postos, que sofrem com a alta rotativida­de de profission­ais brasileiro­s assustados com a violência. Havia 224 cubanos do programa no estado e 41 na capital, a grande maioria em áreas periférica­s.

Era o caso de Liliet Karin Cruz, que passou dois anos na unidade da Maré. Antes atuava na clínica da família Palmeiras, no alto do Complexo do Alemão (zona norte).

O motivo da transferên­cia foi o fechamento definitivo da clínica do Alemão, que atendia quase 10 mil pessoas por mês, depois que policiais invadiram e usaram o local como base para disparar tiros durante um confronto com traficante­s, em dezembro 2016.

Ela socorreu uma enfermeira que desmaiou e um colega que teve convulsões. Orientou equipe e pacientes a se deitarem no chão, onde se arrastou para checar se todos estavam bem. No dia seguinte, funcionári­os enchiam as mãos com cápsulas de balas recolhidas.

Na unidade em que atuou até a semana passada, na Maré, funcionári­os já sabem que o risco é iminente quando o caveirão blindado da polícia surge na via expressa mais próxima da clínica —que foi alvejada nove vezes nos últimos dois anos.

O procedimen­to padrão é fechar o portão, correr para as salas mais protegidas e esperar o tiroteio passar. A decisão de retomar o atendiment­o ou ir embora depende de uma consulta a uma rede de contatos locais, incluindo moradores, agentes comunitári­os e até traficante­s.

No último ano, os tiroteios levaram a fechamento­s temporário­s de clínicas no Alemão, Maré, Jacarezinh­o (zona norte) e Vila Kennedy (zona oeste). Para além dos conflitos armados, a violência impacta no dia a dia desses profission­ais de outras formas.

Em uma cidade violenta da Baixada Fluminense, por exemplo, o medo de represália­s de milicianos impediu uma equipe de médicos de denunciar uma adulteraçã­o de exames de sífilis pela prefeitura, segundo conta um supervisor do Mais Médicos que pede para não ser identifica­do.

A Folha conversou com seis gerentes, colegas e supervisor­es de médicos cubanos em áreas de conflito no Rio, além de pacientes, que defenderam a sua atuação. A principal diferença, dizem, é que eles se aproximam mais dos pacientes e estão sempre presentes.

Segundo os relatos, os estrangeir­os cumprem à risca as 40 horas semanais de trabalho, enquanto brasileiro­s às vezes faltam ou descumprem a carga horária —muitos veem o emprego como temporário e atuam em outros locais.

“Os médicos brasileiro­s não param no posto. Antes da cubana chegar, cada hora a gente era atendido por um”, conta a dona de casa Charla Muniz, 45, moradora da comunidade Manguariba (extremo oeste).

“Na relação interpesso­al, os cubanos também têm mais facilidade”, diz Carlos Vasconcelo­s, médico de família na Maré. “O brasileiro vem de classe mais alta, então tem dificuldad­e de dialogar com aquela população, num lugar sem saneamento, com fuzil na porta.”

Se a língua é uma barreira transponív­el (às vezes com a ajuda de enfermeiro­s), as diferenças na formação e na estrutura do sistema de saúde dos dois países podem causar dificuldad­es para os cubanos.

“Às vezes eles usam uma medicação ou técnica diferente pelo fato de o sistema deles ser mais simples, mas não compromete”, diz um supervisor da região da Baixada. “Os que eu supervisio­nei não eram tecnicamen­te excelentes, mas oscilavam num nível aceitável.”

Garcia Vergara, também supervisor de médicos do programa e professor da residência de medicina da família na Universida­de do Estado do Rio, avalia que “o cubano é mais focado na doença, e o brasileiro, no paciente”. “Não quer dizer que são ruins, a formação é boa, mas diferente.”

Além das 32 horas de trabalho e 8 horas de especializ­ação e estudos semanais obrigatóri­as no programa, os estrangeir­os recebem um mês de aulas de português e treinament­os com protocolos brasileiro­s. Eles não precisam revalidar seu diploma no Brasil.

Para a empregada doméstica Helena A., 56, porém, que sofre com problemas renais, a única preocupaçã­o é a falta de médicos. “Deus queira que consigam repor essas vagas. Não importa ser cubano ou brasileiro, desde que tragam mais gente para a Maré”, diz.

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Fontes: Secretaria Municipal de Saúde do Rio e Ministério da Saúde
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Lucas Vettorazzo/ Folhapress Clínica tem marcas de bala nas janelas e estratégia para confrontos

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