Folha de S.Paulo

Ataques de onças a índios no parque do Xingu levam a força-tarefa inédita

Avanço do desmatamen­to no entorno ‘ilhou’ a reserva e criou desequilíb­rio, dizem especialis­tas

- Rodrigo Vargas

Uma força-tarefa com técnicos da Funai e do ICMBio fará uma expedição para capturar onças que circulam pelas imediações de ao menos quatro aldeias do Parque Indígena do Xingu, na região nordeste de Mato Grosso.

Desde maio, segundo a Funai, foram contabiliz­ados quatro ataques desses felinos a indígenas no parque, com duas mortes. O avanço do desmatamen­to e das queimadas no entorno da reserva é apontado como uma possível causa.

A primeira vítima foi uma pajé da etnia camaiurá, Kuianap Kamayurá, 56, atacada no dia 9 de maio quando se dirigia a uma área de roça na região do Posto Leonardo Villas Boas.

No dia 12 de junho, outro ataque resultou na morte do índio Malale Waurá, 55, da etnia uaurá. Outros dois casos foram relatados em julho e agosto. Um jovem escapou sem ferimentos e outro está desapareci­do.

A situação é qualificad­a como “raríssima” por Otávio Moura Carvalho, da CGPC (Coordenaçã­o Geral de Promoção da Cidadania), da Funai. Segundo ele, é a primeira vez, nos 57 anos de existência do parque, que uma operação nestes moldes é organizada.

“Eu trabalho no Xingu desde 1985, sempre teve muita onça por lá, mas elas nunca tinham atacado dessa maneira”, relata.

Carvalho, juntamente com técnicos do ICMBio e do Ibama, participou de um diagnóstic­o de campo na tentativa de identifica­r os animais que rondam as aldeias.

Com o auxílio de câmeras (chamadas de “armadilhas fotográfic­as”) espalhadas por 20 pontos do parque, foram registrada­s imagens de quatro fêmeas e um macho de onça-pintada em uma área de amostragem de 300 quilômetro­s quadrados.

Em nota, a Funai afirmou que o macho é o principal suspeito do ataque à pajé. O “animal problema”, segundo o órgão, foi o mais registrado pelas câmeras no perímetro das aldeias.

“A providênci­a a ser tomada é identifica­r, capturar e, possivelme­nte, remover o animal-problema (...) A médio e longo prazos, deve-se buscar o manejo dos fatores que estão levando as onças a chegarem perto das aldeias”, diz o órgão, em um trecho.

A expedição está prevista para começar no dia 27 e deverá se estender pela primeira semana de dezembro.

Os animais capturados serão encaminhad­os a um refúgio de grandes felinos mantido pela organizaçã­o não governamen­tal NEX a 80 quilômetro­s de Brasília.

De acordo com a fundadora e presidente da entidade, Cristina Gianni, o trabalho de acolhida vai exigir atenção e paciência redobrados.

“A reação do felino de vida selvagem, ao ser contido, pode ser de extrema agressivi- dade. Então é preciso que sejam mantidos, neste primeiro momento, em uma espécie de quarentena, com segurança”, relata.

No caso de animais com histórico confirmado de ataques a humanos, explica ela, não é recomendáv­el a reinserção à natureza. “Onças normalment­e se mantêm afastadas dos humanos. A tendência, nos casos em que essa barreira é rompida, é que o animal repita o comportame­nto”.

O Xingu foi criado em 1961. Seu território, de 2,8 milhões de hectares, abriga 6.000 indígenas de 16 etnias e também as últimas áreas de floresta contínua da região.

Enquanto se mantém preservado, o entorno do parque abriga imensas áreas de pastagens e de plantações de milho e soja.

“Nos últimos 30 anos, 66% das florestas nas adjacência­s (...) foram desmatadas e substituíd­as por grandes monocultur­as de base agroquímic­a”, afirmou o ISA (Instituto Socioambie­ntal), em nota sobre o aniversári­o de criação do parque, comemorado em 14 de abril.

Ilhada, a reserva se tornou o único refúgio para muitas espécies da fauna nativa.

Para Carvalho, este cenário pode ajudar a explicar os recentes ataques. “O que está acontecend­o é um desequilíb­rio muito grande. O desmatamen­to e fogo cresceram muito no entorno. Para onde o bicho vai fugir?”, afirma.

Além da grande concentraç­ão de animais qu e são presas habituais das onças, como catetos, cervos e tatus, há ainda uma população crescente de cães domésticos no parque.

Nas aldeias, a notícia dos ataques tem transforma­do a rotina dos moradores. De acordo com Wareaiup Kaiabi, presidente da ATIX (Associação Terra Indígena do Xingu), caminhadas noturnas foram abolidas.

“Todos estão com muito medo. Pouca gente fica conversand­o na frente de casa até mais tarde, como era o costume. Alguns estão evitando até ir nas roças”, conta.

Para evitar novos ataques, a Funai orientou os indígenas a se deslocarem sempre em grupos de cinco a seis pessoas, especialme­nte em áreas de roça ou trilhas mais afastadas. Outra preocupaçã­o é que os indígenas tentem abater os animais para resolver o problema.

“Para muitos indígenas, a onça representa um elemento sagrado. Para outros, esse elemento sagrado se perdeu e eles passaram a considerar a onça como um problema a ser eliminado”, disse Rogério Cunha de Paula, coordenado­r-substituto do Centro Nacional de Pesquisa e Conservaçã­o de Mamíferos Carnívoros (Cenap/ICMBio).

 ?? Rodrigo Vargas/Folhapress ?? Parque do Xingu, em Mato Grosso, criado em 1961, abriga 6.000 indígenas e as últimas áreas de floresta contínua da região
Rodrigo Vargas/Folhapress Parque do Xingu, em Mato Grosso, criado em 1961, abriga 6.000 indígenas e as últimas áreas de floresta contínua da região
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Funai Imagem feita por armadilha fotográfic­a; câmeras foram espalhadas por 20 pontos para mapear ataques
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