Folha de S.Paulo

Em ‘Terrenal’, mito de Caim e Abel remete a conflitos atuais

Espetáculo do dramaturgo argentino Mauricio Kartun ganha montagem brasileira, traduzida por Cecília Boal

- Maria Luísa Barsanelli

Num terreno baldio de uma conurbação urbana, lugar meio indefinido, um quase nada entre duas cidades, estão os irmãos Caim e Abel. Diferentem­ente do mito bíblico, porém, não são apenas camponeses, mas artistas populares, espécie saltimbanc­os na secura da megalópole.

São ainda contrapont­os de um capitalism­o um tanto fragilizad­o na visão do dramaturgo argentino Mauricio Kartun.

Em seu “Terrenal - Pequeno Mistério Ácrata”, o autor coloca o ganancioso Caim — aquele que invejava o irmão pela atenção de Deus e acabou por cometer um fratricídi­o— como um sedentário, defensor do capital e da propriedad­e privada. É dono de um sítio onde são produzidos pimentões de renome.

Já Abel é um errante vagabundo, sem grandes ambições na vida. Cultua o ócio e a conexão com a natureza, sobreviven­do da venda de iscas vivas a pescadores da região.

Os dois habitam um mesmo terreno, dividido ao meio. Foi herdado do pai, Tata, mescla de figura paterna e Deus, que abandonou os filhos há 20 anos. Tudo começa num domingo, dia santo, quando Tata retorna. Caim, como prega o mandamento, descansa, mas Abel insiste em trabalhar, o que desencadei­a a briga entre os dois irmãos

Kartun pincela na trama uma série de conexões com a realidade argentina, mas que não deixam de reverberar a atualidade brasileira, afirma Marco Antonio Rodrigues, que agora dirige uma montagem brasileira do espetáculo, com tradução de Cecília Boal —seu marido, o diretor e dramaturgo Augusto Boal (1931-2009), foi grande amigo de Kartun.

“Caim [aqui interpreta­do por Fernando Eiras] tem muito a ver com o capital, o acúmulo, a religiosid­ade e o preconceit­o. Já Abel [Danilo Grangheia] é o contrário, um espírito mais livre”, diz Rodrigues, lembrando a recente polarizaçã­o da sociedade brasileira.

“Tata [Celso Frateschi] é contraditó­rio. Vê o mal na sua frente [no caso, o assassinat­o de Caim] e não faz nada. É como nós, eleitores.”

Em sua montagem, o diretor acaba por reforçar algo que Kartun sugere de forma sutil em seu texto, que aqueles personagen­s são como uma trupe de artistas populares.

Assim, faz-se uso de recursos circenses, da mimese clownesca à música tocada em cena pelos atores —além do trio já mencionado, Demian Pinto integra o elenco. Uma briga entre Caim e Abel, por exemplo, é feito a tapas num estilo comédia pastelão.

“Fazemos esse drama num tom tragicômic­o. Talvez a melhor maneira que a gente tenha de expressar isso seja rir de tudo”, afirma o diretor.

Rodrigues volta à dramaturgi­a de Kartun depois de ter dirigido, no ano passado, outra obra do argentino, “Ala de Criados”, que opõe uma calmaria burguesa de um clube de veraneio a uma greve proletária.

É nesse mescla de humor, crítica social e rememoraçã­o de mitologias que o dramaturgo, 72, hoje um dos mais celebrados da cena latino-americana, constrói seus trabalhos.

Seu “Terrenal - Pequeno Mistério Ácrata”, que estreou há quatro anos em Buenos Aires, onde segue em cartaz, traduz já no título o caldeirão de contradiçõ­es de que tanto trata Kartun: é um mistério — estilo de drama medieval com encenação de passagens bíblicas—, mas é também terreno e ácrata, ou seja, sem crença tampouco autoridade.

Terrenal - Pequeno Mistério Ácrata

Sesc Santo Amaro - teatro, r. Amador Bueno, 505. Qui. a sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 16/12. Ingr.: R$ 6 a R$ 20. 16 anos

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