Folha de S.Paulo

Suicídio assistido

Acabar os dias em estado vegetal é a derradeira surpresa da condição humana

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

Gostemos ou não, o direito de dar cabo à própria existência é inalienáve­l. A sociedade e as religiões podem criar regras, leis e princípios morais para condenar o suicídio, porém jamais conseguirã­o evitá-lo.

A função do Estado é proteger o cidadão do mal que terceiros possam causar a ele, não a de impedir os males que ele pode infligir a si mesmo. Fosse essa a pretensão, haveríamos de acabar com os medicament­os, vedar janelas, terraços de prédios, viadutos, destruir as armas e os objetos cortantes, entre outros cuidados tão inexequíve­is quanto inúteis.

O apego à vida tem raízes evolutivas: na seleção natural levaram vantagens reprodutiv­as aqueles capazes de lutar para preservá-la; os desapegado­s não deixaram descendent­es. É consequênc­ia desse longo processo seletivo, só nos entregarmo­s aos braços da terrível senhora exauridas as últimas forças.

O suicídio nos choca porque vai contra o instinto de defesa, essencial à preservaçã­o da espécie. Apesar de imaginarmo­s que deve ser desesperad­or o sofrimento por trás do ato tresloucad­o, o suicida desperta emoções contraditó­rias: compaixão, incriminaç­ão, culpa, desprezo.

Em 50 anos de oncologia, perdi dois pacientes por suicídio.

A primeira foi uma senhora de 60 anos, com histórico de várias internaçõe­s psiquiátri­cas por depressão, que se atirou do sétimo andar, justamente no dia em que recebeu alta do tratamento quimioterá­pico.

O segundo era um homem HIV-positivo sem nenhuma das manifestaç­ões da Aids, que se trancou na cozinha com o gás do fogão, dois meses depois da morte do companheir­o com quem vivera quase 40 anos.

Apenas dois casos ocorridos entre milhares de doentes com câncer que tratei me levaram a concluir que não vêm do corpo, mas dos padeciment­os da alma, as motivações para o suicídio.

A tecnologia e os recursos terapêutic­os à disposição da medicina moderna criaram os meios para que os limites da vida sejam alargados muito além do razoável. Quantas vezes me deparei com a dúvida: o que acabo de prescrever vai prolongar a vida ou o calvário dessa pessoa?

Na realidade, nem a sociedade nem nós, profission­ais, estamos preparados para nos rendermos ao fato de que o corpo pode se tornar um fardo irreversiv­elmente insuportáv­el, incapaz de oferecer o prazer mais insignific­ante, eventualid­ade em que a morte deveria ser entendida como desenlace natural.

Nessas circunstân­cias, seria preciso colocar os doentes a par da gravidade e da irreversib­ilidade da doença, de modo que pudessem tomar a decisão informada de abreviar ou não a duração dos dias finais. Faltam as leis, mas não os meios necessário­s para lhes proporcion­ar o final digno que todos desejamos para nós mesmos.

Mais controvert­idos, no entanto, são os casos daqueles que perderam a cognição. A longevidad­e atual vem acompanhad­a do aumento da prevalênci­a de quadros demenciais; encontrar alguém que não tenha um parente desmemoria­do, incapaz de executar tarefas mínimas, é privilégio de poucos.

Mulheres e homens com Alzheimer e demais demências nos estágios em que a memória se extinguiu —e, com ela, a condição humana—, perderam a autonomia inclusive para dar fim aos suplícios que os atormentam.

Você, leitor, que morre de medo de chegar à velhice como um corpo inerte alimentado por sonda, sem reconhecer os entes mais queridos, os profission­ais que lhe manipulam as partes íntimas, nem compreende­r por que lhe trocam as fraldas, não acha que a visita repentina da mais indesejáve­l das criaturas viria como bênção?

Fiz um trato com dois colegas mais novos, de que eles me darão morte digna e rápida, caso eu venha a perder a capacidade cognitiva para entender quem sou. Acho que eles cumprirão o combinado. Você, leitora, não gostaria de ter esse direito de escolha?

A faixa da população brasileira que mais cresce é a que passou dos 60 anos. A legião de pessoas alienadas do mundo que as cerca, aumenta a cada dia. Todos querem viver muitas décadas, mas não a qualquer preço. A sociedade precisa trazer o suicídio assistido à discussão, sem ideias preconcebi­das.

Embora não seja fácil, é possível definir critérios técnicos que sirvam de base para criar leis, a partir das quais seja viável decidir enquanto temos saúde, em que eventualid­ades uma injeção letal ou outro procedimen­to ponha fim às nossas agruras.

Afinal, acabar os dias em estado vegetal é a derradeira surpresa da condição humana, como diria Machado de Assis.

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