Folha de S.Paulo

Artistas retratam Brasília em construção e ruínas

Em tempos de forte polarizaçã­o política, Palácio da Alvorada aparece ultrajado em pinturas, esculturas e fotografia­s

- Silas Martí

Brasília já foi ruína, mesmo na visão de seu arquiteto. Quando se exilou em Paris, no rastro do golpe que mergulhou o país numa ditadura militar, Oscar Niemeyer pintou pelo menos dois quadros retratando os escombros futuros do que era ainda uma resplandec­ente capital no cerrado.

Nessas pinturas quase desconheci­das, as colunas em formato de âncora que ele desenhou para o Palácio da Alvorada aparecem caídas, imersas no grande breu de um pântano, como vítimas de uma tempestade acachapant­e.

Os ventos e solavancos não deram nenhuma trégua desde então. E, em tempos de fortes raios e trovões, com a capital do país no fogo cruzado de tensões e desilusões políticas, artistas vêm retratando marcos de Brasília como uma ruína de pegada romântica ou construção às avessas.

Essas obras, ecos do pensamento de Claude LéviStraus­s, um dos primeiros a observar que tudo por aqui já se avolumava como um peso morto no horizonte mesmo que ainda saísse do papel, são agora retratos instantâne­os do fracasso dessa utopia.

Lais Myrrha, que está entre as artistas mais relevantes do país, plasma essas du- as vertentes da história em seus trabalhos mais recentes.

Sua última instalação, montada na Bienal de Gwangju, mostra de arte contemporâ­nea na Coreia do Sul, é uma réplica em tamanho real de uma das colunas do Alvorada equilibrad­a sobre outro pilar, cópia em miniatura de um dos alicerces da varanda da casa grande de uma fazenda do século 19 no Rio de Janeiro.

Niemeyer reconhecer­ia depois que a residência do senhor de Colubandê, esse engenho nos arredores da capital fluminense, foi uma das matrizes conceituai­s e imagéticas para o palácio do presidente.

E, nos moldes da casa do dono das terras, o arquiteto de Brasília construiu uma capela colada ao palácio mais deslumbran­te da capital do país.

O novo trabalho de Myrrha, a ser montado no mês que vem no Auroras, centro cultural da zona oeste paulistana, reencarna, ainda que reticente, essa ideia de fé no futuro.

Seu plano é recriar, em forma de escultura, a fotografia de um molde de uma coluna do Alvorada. Numa das imagens mais célebres da construção do palácio, essa estrutura aparece ainda como pedra molhada a ser moldada por pedaços de pau em sucessão geométrica, num misto de gambiarra e projeto utópico.

Ou mesmo encruzilha­da, como queria Lucio Costa ao desenhar a capital federal no formato de um avião pousado no vazio do Planalto Central.

Evandro Prado, jovem artista radicado em São Paulo, também acaba de verter para a pintura essa mesma imagem, o traço ríspido e cinzento dessa nave de concreto, alicerce da nação, como estranho amuleto atravessad­o pela força inclemente das estacas.

Nem ele nem Myrrha retratam qualquer traço humano, como se Brasília, em toda a sua exuberânci­a monolítica, ao mesmo tempo barroca e ultramoder­na, fosse um asteroide em forma de cidade caído do céu límpido do cerrado.

Mas outros artistas fazem questão de escancarar as cha- gas dos escravos dessa utopia.

Numa série de fotografia­s que vem fazendo há uma década, Ding Musa retrata os bastidores dos palácios da capital, as horas mortas do Alvorada e outros deles em que empregados, em grande maioria negros e nordestino­s, aparecem limpando as suntuosas dependênci­as do grande poder.

Enquanto isso, o performer Paul Setúbal, em chave mais metafórica, estendeu réplicas esfacelada­s das colunas do Alvorada numa galeria de arte da capital federal, deixando à mostra só o ferro retorcido, esqueleto dessas construçõe­s. É a autópsia deslavada de um país assombrado por seus sonhos tornados pesadelos.

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Divulgação Pintura de Evandro Prado, retratando coluna do Palácio da Alvorada durante a construção de Brasília, e fotografia de Ding Musa, que mostra a calmaria da residência presidenci­al
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