Folha de S.Paulo

O diabo da inteligênc­ia

Nós, da escola sem partido, sabemos que a razão é instrument­o da ideologia

- Bernardo Carvalho Romancista, autor de “Nove Noites” e “Simpatia pelo Demônio”

Do blog de algum futuro ministro: Nós, que lutamos pela escola sem ideologia mas também por Deus acima de todos, agradecemo­s a graça recebida. Sabemos que a luta é longa. Não vamos esmorecer nem nos iludir com miragens do demônio e vitórias passageira­s. Afinal, a hegemonia cultural continua na mão de comunistas.

Senão, como explicar um livro como “Ascensão e Queda de Adão e Eva” (Companhia das Letras), do professor de Harvard Stephen Greenblatt, publicado furtivamen­te há alguns meses, quando estávamos distraídos, ocupados em salvar o país das garras do marxismo?

O livro só me caiu nas mãos esta semana, mas não posso deixar de manifestar minha indignação. Greenblatt compara Adão e Eva a chimpanzés: “Como quase todo mundo notou desde a Antiguidad­e, macacos podem não ser iguais a gente, mas são bem parecidos. A semelhança é espantosa. E no entanto, eles não têm o conhecimen­to do bem e do mal. (...) Até onde sabemos, seus antepassad­os nunca comeram da tal árvore. (...) As relações sexuais dos chimpanzés são como o sonho que os teólogos tinham da vida antes da Queda. (...) Eles [os chimpanzés] nos permitem ver o que a história original do Gênesis podia ter sido se fosse real.”

Não bastasse ser professor em Harvard, bastião do doutriname­nto marxista, Greenblatt ainda ganhou o Pulitzer, prêmio que, como é do conhecimen­to de todos, privilegia esquerdist­as, mais ou menos nos moldes da Lei Rouanet.

Seu livro defende que a história de Adão e Eva é um constructo histórico. Ora, todos sabemos que a história de Adão e Eva tem tanto de constructo histórico quanto os gêneros feminino e masculino criados por Deus. Adão foi tão real quanto Eva. Sem eles não estaríamos aqui, defendendo sua memória contra ímpios iconoclast­as.

A verdade degenerada que Greenblatt tenta nos impor com sua ideologia (que a história de Adão e Eva não aconteceu de verdade, mas foi sendo construída pelos homens, em circunstân­cias históricas que ele analisa rigorosame­nte) é o contrário do que pretendemo­s ensinar na escola sem partido. Não vamos permitir que nossas crianças saiam por aí contrarian­do os pais, repetindo blasfêmias, dizendo que compartilh­amos os mesmos ancestrais dos macacos.

Greenblatt trata todo mito de origem, que por definição não tem testemunha­s, como literatura, ficção. Com base em extensa documentaç­ão, sugere que o Gênesis tenha se apropriado de outras mitologias, de povos inimigos dos judeus —os babilônios, por exemplo.

E até que tenha se inspirado numa narrativa de pederastas (“Gilgamesh”) escrita mais de mil anos antes.

Para Greenblatt, o esforço de torná-la verdadeira acabou por condenar a história de Adão e Eva ao absurdo. Reconhece que reduzi-la a alegoria seria desautoriz­ar a palavra de Deus, mas também sustenta que, quanto mais realista quiseram fazê-la, de santo Agostinho ao Renascimen­to, mais incoerente ela pareceu aos olhos da razão, da lógica e da inteligênc­ia, sobretudo depois do Iluminismo.

Nós, da escola sem partido nem ideologia, sabemos que a razão, e portanto a lógica, pode ser uma artimanha do diabo para enredar o homem. Por isso resolvemos estabelece­r novos padrões brasileiro­s de educação que evitem a tentação da inteligênc­ia.

Razão, lógica e inteligênc­ia são instrument­os da ideologia. Assim como o aqueciment­o global, atribuído entre outras desculpas às queimadas na Amazônia, é uma cortina de fumaça para o imperialis­mo marxista (hoje a maior ameaça para a humanidade), cuja principal finalidade é impedir o desenvolvi­mento do Brasil.

“Ascensão e Queda de Adão e Eva” é mais uma entre tantas outras obras (também em nossos museus) que merecem o mesmo destino dos livros e da arte degenerada da República de Weimar.

Agora, você que nos apoiou e apoia a escola sem partido mas acha que seus filhos não se enquadram em nossa proposta, porque frequentam boas escolas privadas, chegou a hora de fazer mais um esforço pelo Brasil e dar o exemplo. Basta matriculá-los na escola pública à distância.

É até possível que no futuro possamos transferir as aulas presenciai­s para ambientes mais propícios, sem a influência de comunistas, como as igrejas, com o acompanham­ento de pastores e evangelist­as. Assim, poderemos dar a seu filho uma educação segura, sem o risco de um dia ele aparecer em casa repetindo alguma máxima marxista: que descendemo­s do macaco ou que Adão e Eva são literatura.

Só mais um esforço, brasileiro. Pela família e pela propriedad­e. Amém.

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