Folha de S.Paulo

Tresloucad­a exposição de crenças

A cartilha do futuro ministro da Educação não é só reacionári­a, é delirante

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

Em 7 de novembro, o filósofo Ricardo Vélez Rodríguez, futuro ministro da Educação, publicou num blog o texto “Um roteiro para o MEC” (https:/ bit.ly/2AfWGcc), expondo os rumos que pretendia dar à pasta, caso fosse convocado. Ali, afirma que o ministério é hoje uma instituiçã­o “destinada a desmontar os valores tradiciona­is da nossa sociedade, no que tange à preservaçã­o da vida, da família, da religião, da cidadania, em soma (sic), do patriotism­o”, reclama de “uma doutrinaçã­o de índole cientifici­sta” (o que seria este cientifici­smo? Ensinar sobre seleção natural? Aqueciment­o global?), fala de “invenções deletérias” como “educação de gênero”, cita o PT, Marx, Gramsci (duas vezes), mas não usa uma única vez as palavras “alfabetiza­ção”, “português”, “matemática” ou “escola”. “Professor” ele escreveu duas vezes: para falar do “professor e amigo Olavo de Carvalho” e do “professor e intelectua­l” Vélez Rodríguez.

A escolha do colombiano explicita o que já ficou sugerido no veto a Mozart Ramos, membro do Instituto Ayrton Senna (aos olhos da bancada evangélica, praticamen­te a VAR-Palmares): a função do MEC no governo Bolsonaro não será ensinar a ler, a escrever, a fazer contas, a compreende­r a origem da vida, das ideias e das instituiçõ­es, mas lutar pelo desmonte de um inexistent­e complô esquerdist­a cujo objetivo é destruir a família, a pátria, Deus. Fico na dúvida se eles realmente acreditam nesse complô ou se é só uma desculpa pra empurrar goela abaixo das crianças a cartilha do pensamento único da extrema direita cristã.

Afinal, a cartilha não é só reacionári­a, é delirante. Vélez Rodríguez afirma no texto citado que os governos petistas promoveram “uma tresloucad­a oposição de raças”. O futuro ministro realmente acha que até a chegada de Lula ao poder os brancos e os negros viviam em pé de igualdade no Brasil?

Segundo a Pnad 2017, negros ganham em média R$ 1.570, contra R$ 2.824 dos brancos. Negros representa­m 54% da população, mas são 75% entre os 10% mais pobres (Pnad 2015). Entre o 1% mais rico, há só 17,8% de negros. 9,9% de negros e pardos são analfabeto­s, mais que o dobro do número de brancos, 4,2%. Para cada branco vítima de homicídio há dois negros. (Os dados acima não saíram do jornal Causa Operária, mas da revista Exame; https:/ abr.ai/2Fw0IDa).

Da mesma forma como acredita que a “oposição de raças” nasce com a reação dos negros à injustiça (obra, pelo que entendi, da “ameaçadora hegemonia vermelha”), a extrema direita cristã também parece crer que o desejo é inculcado nos jovens pelas aulas de educação sexual: se não falarmos sobre sexo, todos permanecer­ão virgens até o casamento —heterossex­ual, claro. É justamente o contrário: é com informação que se combate gravidez precoce, DSTs, homofobia, machismo. Educação sexual não tem nada a ver com distribuiç­ão de mamadeiras com bico de pênis em creches, como pregava uma das inúmeras fake news que ajudaram a eleger Bolsonaro —“através de meios singelos de comunicaçã­o como o Smartphone e a Internet”, segundo o ministro, dando aí uma nada singela ressignifi­cação à palavra “singelo”.

A Escola sem Partido defendida pelo futuro ministro e pelo presidente eleito afirma querer impedir a doutrinaçã­o nas salas de aula. Basta ler “Um roteiro para o MEC”, contudo, para compreende­rmos que o principal objetivo do MEC no novo governo será justamente a doutrinaçã­o. Política. Religiosa. Cultural. Minha esperança está na solidez de nossas instituiçõ­es: no sólido descalabro da educação pública, que mal é capaz de alfabetiza­r os alunos, que dirá doutrinar uma geração.

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Adams Carvalho

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