Folha de S.Paulo

Elza Soares lembra João Gilberto

‘Na minha lembrança, meu primeiro passo na música já foi com João Gilberto por perto’

- Depoimento a Walter Porto

A música está acima de todas as coisas para mim, por isso sempre falo dela em primeiro lugar, antes de qualquer outra arte.

Lembro bem o dia em que conheci uma obra-prima musical feita por um homem de grande talento, por quem eu tenho até hoje enorme paixão e admiração: João Gilberto. Deram a mim de presente o “Chega de Saudade”, trabalho inesquecív­el dele.

O disco foi lançado em 1959, época em que eu também estava começando a minha carreira. Assim que ouvi, fiquei alucinada.

João já tinha sido aquele que lutou bastante por mim quando fui contratada na gravadora Odeon, que era a mesma que havia acabado de lançar “Chega de Saudade” com enorme sucesso, então eu já tinha um grande carinho por ele.

Lembro como se fosse hoje, consigo ver a cena diante de mim. Na minha primeira vez pondo os pés dentro da Odeon, lá estava João Gilberto sentado de lado, esperando minha voz. Quando abri a boca e cantei, ele falou: “É disso que se precisa”. Na minha lembrança, meu primeiro passo na música já foi com o João por perto. Comecei bem.

Depois, tive sempre a presença de- le junto comigo na gravadora, me ajudando a escolher músicas, dando suas opiniões. Ficamos amigos muito rápido. Recebi das mãos dele o primeiro troféu da minha carreira, na TV Record.

Tenho uma memória muito fortede nós dois sentados no chão, ladoa lado, ele com seu violão noco- lo, tocando, e eu cantando co mele. Acredito que cheguei agravar uma ou outra música de João, já cantei demais seu repertório nos meus shows, mas eu gosto mesmo é de ouvir ele interpreta­ndo.

Nunca parei para escolher uma música preferida, porque adoro tudo de João. Amo quando ele canta “Chega de Saudade”, porque é uma obra-prima com a qual eu tenho toda essa ligação afetiva. Mas não dá, gosto do João todo.

A arte de João Gilberto é apaixonant­e, revolucion­ária: sua maneira moderna de tocar o violão, que foi ele mesmo quem criou; assim como inventou toda a bossa nova, da qual ele é o pai. Muita gente deve ao João seu trabalho, sua carreira e sua maneira de fazer música.

Eu guardo sempre comigo essa recordação do trabalho do João Gilberto, porque muito além de ser um músico maravilhos­o, ele é um pedaço do Brasil. Para mim é uma honra imensa ter um troféu do João guardado na minha casa.

Acho que sou uma privilegia­da, mesmo. Uma vez um namorado meu também me deu de presente o Chet Baker. Nunca mais pude me separar dele —do Chet Baker, não do namorado. A gente dormia junto com o som de Chet, eu continuo dormindo até hoje com ele.

Eu tenho essa vantagem na vida, de ter grandes obras guardadas comigo, lindas, impecáveis, trabalhos que não vão acabar nunca.

Chet Baker é um presente das estrelas, uma dádiva dos céus, dos namorados, dos amantes. Infelizmen­te nunca o vi pessoalmen­te, só escuto e admiro de longe. Que juventude linda, um pecado completo.

Sei que era para falar de um só grande acontecime­nto na minha vida, mas sinto muito, tive que falar de dois: João Gilberto e Chet Baker.

Gostaria que vocês prestassem bem atenção à música de ambos. Você, mulher, ouve o Chet Baker. Preciso dizer, com licença, é a coisa mais linda do mundo amar com o Baker ao fundo.

 ?? Eduardo Knapp/Folhapress e Reprodução ?? A cantora Elza Soares em estúdio; à dir., capa do álbum ‘Chega de Saudade’ (1959), de João Gilberto
Eduardo Knapp/Folhapress e Reprodução A cantora Elza Soares em estúdio; à dir., capa do álbum ‘Chega de Saudade’ (1959), de João Gilberto
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