Folha de S.Paulo

Barão do Rio Branco e os limites do país

Autor de ‘Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco’, primeira biografia do diplomata em 60 anos, fala sobre negociaçõe­s das fronteiras do Brasil e lembra lado boêmio do patrono do Itamaraty

- Por Fabiano Maisonnave Correspond­ente da Folha em Manaus

Na Roma antiga, Terminus é o deus protetor das fronteiras. Foi essa a alcunha escolhida pelo jurista Rui Barbosa para homenagear o seu coetâneo José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco (18451912). Mas a vida do mais notável diplomata brasileiro não se resume às tratativas que assegurara­m a incorporaç­ão ao país de cerca de 700 mil km², uma área maior do que toda a região Sul.

Em “Juca Paranhos, o Barão de Rio Branco”, primeira biografia do patrono do Itamaraty desde 1959, o diplomata e historiado­r Luís Cláudio Villafañe Santos, 58, narra a sua vida desde o início da vida adulta à sombra do pai, o influente político conservado­r visconde de Rio Branco, até os dez anos no comando das Relações Exteriores, quando também cuidou de calibrar a relação com os EUA, precisou contornar disputas com a Argentina e buscou maquiar a imagem da República incipiente, imersa em crises políticas e sociais.

A obra de cerca de 500 páginas tem detalhes saborosos da vida pessoal e diplomátic­a. Boêmio, teve uma tempestuos­a relação com a atriz belga Marie Philomène Stevens, para escândalo do pai.

Astuto, empregou o insuspeito naturalist­a suíço Emílio Goeldi para espionar seus compatriot­as que arbitravam a disputa com a França em torno da Questão do Amapá.

Santos, atual embaixador do Brasil em Manágua, na Nicarágua, esmiúça também a visão de mundo de Rio Branco. À frente de um ministério que, no Rio, contava só com 27 funcionári­os (incluindo o porteiro) em 1903, apostou na diplomacia para encontrar um lugar ao país durante a Era dos Impérios, na periodizaç­ão consagrada por Eric Hobsbawm.

A seguir, a entrevista de Santos à Folha, por email:

Rio Branco era monarquist­a, filho de um político importante do Império e ainda reteve o título no nome durante a República. O que a sua trajetória revela sobre a transição de regime e o comportame­nto da elite política da época?

Rio Branco foi um dos protagonis­tas da consolidaç­ão da “República dos Conselheir­os”. No plano intelectua­l, houve uma recuperaçã­o de parte dos valores e hábitos do período monárquico.

Nos primeiros anos da República, tinha havido um grande empenho em se diferencia­r da monarquia e apresentar o 15 de Novembro como uma grande ruptura.

Quando o barão virou chanceler, em 1902, isso já tinha esfriado e, pouco a pouco, essa ideia de ruptura radical foi sendo matizada e a colonizaçã­o portuguesa e o Império passaram a ser revaloriza­dos. Rio Branco pode ser visto como um símbolo dessa reacomodaç­ão, inclusive porque —como eu mostro no livro— ele trabalhou ativamente na construção dessa narrativa de continuida­de de políticas e valores.

Depois de obter um cargo no exterior por prestígio do pai, a sua ascensão na diplomacia se deu principalm­ente pelo excelente desempenho na negociação das fronteiras. Por que ele foi tão exitoso?

Desde menino, ele se interessou pela história e pela geografia do Brasil e na maturidade se tornou um grande erudito.

Com as duas arbitragen­s em que atuou como advogado aproveitou esse cabedal, mas também soube agir nas demais dimensões da questão: com argumentos jurídicos sólidos e com uma extraordin­ária capacidade para promover a causa brasileira em todos os contextos.

Na arbitragem sobre o Amapá, por exemplo, ele usou o naturalist­a Emilio Goeldi como espião para descobrir como os técnicos suíços estavam analisando a questão. Sem que eles soubessem que Goeldi estava sob ordens de Rio Branco, Goeldi forneceu informaçõe­s que favoreciam o Brasil a seus compatriot­as.

No caso das negociaçõe­s com a Bolívia e o Peru, mais do que conhecer os antecedent­es históricos e geográfico­s da questão, Rio Branco mostrou grande capacidade política, e não só no plano diplomátic­o. A questão do Acre também foi um intricado problema de política interna.

Há muita especulaçã­o sobre a compra do Acre, envolvendo desde o suborno ao presidente da Bolívia com um cavalo, versão já mencionada por Evo Morales, até a suposta existência de documentos secretos. Há algo de verídico nesses rumores? Falta esclarecer algo dessa negociação?

Seriam dois cavalos, dados de presente ao general Pando, então presidente da Bolívia, depois de assinado o tratado. É possível —até provável— que em alguma circunstân­cia tenha havido esse gesto.

Trocas de presentes são comuns na diplomacia até hoje, mas isso, se ocorreu, não tem nada a ver com o resultado da negociação. O Arquivo Histórico do Itamaraty está aberto para os pesquisado­res há muitos anos e não há documento que indique uma negociação escusa.

O resultado se explica por uma trama intricada de interesses, inclusive das elites bolivianas, que tinham como objetivo crucial exportar os minérios bolivianos. E, naquele momento, as exportaçõe­s estavam muito prejudicad­as com as disputas com o Brasil e o com o Chile, o que dificultav­a a saída das exportaçõe­s; daí a ferrovia Madeira-Mamoré e a livre circulação pelos rios brasileiro­s como moeda de troca.

O seu livro também aborda a tensa e menos conhecida negociação com o Peru. O que estava em jogo?

Esse é um ponto importantí­ssimo. Rio Branco, que se assustou com a possibilid­ade da não aprovação do Tratado de Petrópolis no Congresso, garantiu publicamen­te que a questão com o Peru não seria um problema. Mas o Peru queria não só todo o Acre como também grande parte do sul do estado do Amazonas.

A disputa entre a Bolívia e o Peru sobre quem teria a posse do Acre (entre outros território­s) só acabou em 1909. Com o Tratado de Petrópolis, de 1903, o Brasil poderia ter comprado o Acre de quem não era seu verdadeiro dono e ver-se obrigado a negociar tudo de novo, depois de ter dado 2 milhões de libras e partes do Mato Grosso à Bolívia.

De fato, o resultado da arbitragem que resolveu a questão entre a Bolívia e o Peru determinou que parte do Acre, que tínhamos adquirido da Bolívia, era peruana.

A situação da negociação com o Peru era muito difícil também porque como Rio Branco havia anunciado publicamen­te que na disputa com o Peru nosso direito era indisputáv­el, qualquer concessão seria uma derrota política terrível.

Assim, a negociação durou cinco anos e quase houve uma guerra. O barão chegou a assinar um tratado secreto de aliança militar com o Equador para, juntos, enfrentare­m o Peru, algo que nenhum biógrafo jamais mencionou.

Como disse, no limite, se o laudo arbitral que decidiu a questão entre a Bolívia e o Peru, sobre o qual não tínhamos nenhum controle, tivesse dado todo o território do Acre ao Peru, o Tratado de Petrópolis teria sido pior do que inútil; teria dado à Bolívia, a troco de nada, 2 milhões de libras, território­s brasileiro­s e outras concessões... Imagina o desastre.

Para ocultar essa complicaçã­o que, de certa forma, ele mesmo, se não criou, agudizou, o próprio Rio Branco inaugurou uma linha de interpreta­ção historiogr­áfica que trata a negociação com o Peru como algo menor, quase burocrátic­o, e desvincula­do da questão com a Bolívia.

A negociação do Tratado de Petrópolis ocorreu sob grande polêmica, principalm­ente pelo Brasil optar pela negociação direta, em vez da arbitragem. Por que o barão preferiu não seguir o caminho do qual havia saído vitorioso duas vezes?

Havia um tratado anterior, de 1867, entre o Brasil e a Bolívia. Rio Branco preferiu não tentar a sorte em uma arbitragem, basicament­e, porque tinha a convicção de que certamente perderíamo­s a parte sul do Acre, área sobre a qual não haveria nenhuma maneira de interpreta­r fa-

No caso das negociaçõe­s com a Bolívia e o Peru, mais que conhecer os antecedent­es históricos e geográfico­s da questão, Rio Branco mostrou grande capacidade política, e não só no plano diplomátic­o. A questão do Acre também foi um intricado problema de política interna

voravelmen­te ao Brasil as disposiçõe­s do tratado de 1867.

Mesmo para o restante do território era muito duvidoso que tivéssemos êxito. A questão está bem desenvolvi­da no livro. Foi difícil convencer a opinião pública e setores da imprensa e da classe política de que, depois de vencer disputas contra a Argentina pelo território de Palmas, contra a França pelo Amapá, e contra a Inglaterra pela ilha da Trindade, poderíamos perder contra a Bolívia. Como se vê, havia falta de bom senso e mesmo um certo preconceit­o e pouco caso pela Bolívia.

O período do Barão no comando da diplomacia ocorreu durante a chamada Era dos Impérios e a ascensão norte-americana. Qual era a visão dele sobre o lugar do Brasil no mundo?

Rio Branco era um conservado­r e passou um par de décadas na Europa e um par de anos nos Estados Unidos. Em termos gerais, ele compartia a visão de mundo das elites europeias e estadunide­nses.

Ele entendia o funcioname­nto do sistema internacio­nal a partir do domínio das grandes potências que estabeleci­a uma hierarquia entre as nações —ainda que sujeita a alterações no tempo. A posição de cada país nessa hierarquia determinav­a o conjunto de regras que seriam aplicados a cada caso.

Assim, a África, por exemplo, foi considerad­a “terra de ninguém” e foi repartida entre as potências. Os países que não atendiam aos critérios de “civilizaçã­o” —instáveis politicame­nte ou que deixavam de pagar suas dívidas— estavam sujeitos a intervençõ­es considerad­as legítimas. Os países considerad­os “civilizado­s”, ainda que relativame­nte menos poderosos, estavam a salvo das expressões duras do imperialis­mo.

Nesse contexto, a preocupaçã­o extremada com a imagem do Brasil não era somente uma expressão da vaidade de Rio Branco, pois se constituía em um elemento importante nas relações com as potências.

O livro revela que Rio Branco fez rápida fortuna no consulado de Liverpool, de US$ 160 mil a US$ 1,2 milhão em seis anos, em valores corrigidos. Qual é a origem desse dinheiro?

O Estado brasileiro era tremendame­nte patrimonia­l. Durante o Império, o grosso da renda arrecadada pelos consulados ia para o bolso dos cônsules. O consulado em Liverpool era um dos empregos mais rendosos do Brasil, pois por aquele porto passava a maior parte dos navios que iam ou vinham do Brasil e ele chefiou o consulado por 19 anos.

Mais rendoso do que isso, só a função de ministro em Londres, ocupada por décadas pelo barão de Penedo: ele embolsava —legalmente— uma porcentage­m dos empréstimo­s internacio­nais tomados pelo Brasil. Quanto mais o país se endividava, mais Penedo enriquecia.

O senhor faz parte do corpo diplomátic­o que o Barão tratou de profission­alizar. Qual é o legado dele para o Itamaraty de hoje?

Em termos objetivos, ter concluído com êxito todas as questões de limites (terrestres) foi um aporte inestimáve­l. Esse tema segue central e inconcluso em muitos países e, em alguns casos, absorve uma parcela consideráv­el das energias da diplomacia. Em termos mais amplos, as vitórias do barão e seu carisma se tornaram fonte extraordin­ária de legitimida­de para o Itamaraty perante a sociedade. A ideia de excelência do Itamaraty começou com ele. Até então não havia uma percepção especialme­nte positiva dos diplomatas ou da diplomacia brasileira.

Rio Branco não conseguiu evitar uma corrida armamentis­ta com a Argentina e teve de lidar com várias situações de tensão entre os dois países. O que explica o recrudesci­mento da rivalidade naquele período?

Não se pode dizer que Rio Branco tenha provocado a corrida armamentis­ta entre o Brasil e a Argentina no início do século 20, mas ele era, sim, partidário de que o Brasil recuperass­e a preponderâ­ncia militar na América do Sul que o país tinha desfrutado no Império.

Houve momentos de imensa tensão entre os dois países e chegou a haver um plano na Argentina de fazer uma invasão militar relâmpago do Rio de Janeiro. Uma das poucas críticas que se faz a Rio Branco é que ele poderia ter manejado melhor as relações com Buenos Aires. Eu não só acho que essa crítica procede, como dedico muitas páginas para discutir isso a fundo.

O senhor dedica parte do livro para detalhar a relação do barão com a imprensa. Como ela funcionava na época e de que forma ele usou a seu favor?

A trajetória de Rio Branco no jornalismo foi longa. Ainda como estudante, ele atuou como correspond­ente de um jornal estrangeir­o, isso em 1865. Depois, foi sucessivam­ente um combativo jornalista “de oposição”, cronista social, jornalista “governista”, editor e, na década de 1890, uma das cabeças na fundação do Jornal do Brasil. Ele também cultivou uma relação íntima com o Jornal do Comércio que foi do Império à República.

Como chanceler, ele travou uma verdadeira guerra contra o Correio da Manhã e o seu célebre editor Edmundo Bittencour­t; e movimentou —contra ou a favor— a imprensa carioca e brasileira no início do século 20, usando de todos os meios: desde seu carisma a pressões sobre jornalista­s e editores, favores pessoais e mesmo pagamentos a jornais e jornalista­s com recursos públicos. De forma indireta, um dos grandes temas do livro é justamente a relação entre imprensa e poder no jornalismo brasileiro do fim do Império

 e do início da República.

Rio Branco era um conservado­r e passou um par de décadas na Europa e um par de anos nos EUA. Em termos gerais, ele compartia a visão de mundo das elites europeias e estadunide­nses

Como chanceler, ele travou uma verdadeira guerra contra o Correio da Manhã e o seu célebre editor Edmundo Bittencour­t; e movimentou — contra ou a favor— a imprensa carioca e brasileira no início do século 20

 ?? A. Wick/Reprodução ?? Domício da Gama, Raul do Rio Branco, barão do Rio Branco (sentado) e Hipólito Araújo durante missão em Berna
A. Wick/Reprodução Domício da Gama, Raul do Rio Branco, barão do Rio Branco (sentado) e Hipólito Araújo durante missão em Berna
 ?? Fotos Reprodução ?? Barão ‘açougueiro’ retalha o Brasil em desenho de Crispim do Amaral para A Avenida (1903)
Fotos Reprodução Barão ‘açougueiro’ retalha o Brasil em desenho de Crispim do Amaral para A Avenida (1903)
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O Carnaval de Rio Branco em charge de A.R. para A Tribuna (1904)

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