Folha de S.Paulo

‘Elite abriu mão do verniz para eleger Jair Bolsonaro’

Haddad diz que autoritari­smo cresce no país dentro das instituiçõ­es democrátic­as

- Mônica Bergamo

Em sua primeira entrevista após as eleições, Fernando Haddad (PT) disse que a elite econômica abriu mão do verniz para eleger Jair Bolsonaro. “O verniz sempre fez parte da história do Brasil. As classes dirigentes nunca quiseram parecer ao mundo o que de fato são.”

Ele afirmou a Mônica Bergamo ter previsto que a “extrema direita” teria mais espaço na cena brasileira, mas que errou ao imaginar que João Doria (PSDB-SP) lideraria esse campo. “O Doria seria um PSDB bolsonariz­ado, mas com aparência tucana. Eu apostava nele”, disse.

Para Haddad, o país vive um sistema híbrido, diferente do tempo em que “os golpes se davam de fora da democracia, contra ela”. O autoritari­smo hoje cresce dentro das instituiçõ­es democrátic­as e pode se manifestar “na PM, na PF, no Judiciário, no Ministério Público”.

Segundo o petista, se o expresiden­te Lula não tivesse sido condenado, teria ganhado a eleição. “Fiz 45% dos votos. Lula teria feito mais de 50%”.

Haddad minimizou ainda as fortes críticas de Ciro Gomes (PDT) ao PT. “Ele não soube fazer a coalizão que o levaria à vitória.”

Candidato a presidente derrotado nas eleições, Fernando Haddad (PT-SP) diz que há dois anos previa que a “extrema direita” teria espaço na política nacional. Afirma que errou em uma previsão: a de que João Doria (PSDBSP) lideraria esse campo como um “PSDB bolsonariz­ado”.

Em sua primeira entrevista desde a eleição, Haddad afirma que não pretende dirigir o PT nem sua fundação, mas que militará pela formação de frentes em defesa dos direitos sociais e civis.

Para ele, a eleição de Bolsonaro mostrou que o país vive num sistema híbrido, em que o autoritari­smo cresce dentro das instituiçõ­es democrátic­as.

O resultado das eleições deste ano já foi definido como tsunami, implosão do sistema. Qual é a sua visão, de quem foi o derrotado? [sorrindo] Antes de mim tiveram uns 12 [derrotados], né?

O senhor personific­ou a derrota. Há dois anos, eu te dei uma entrevista. E talvez tenha sido um dos primeiros a dizer: “É muito provável que a extrema direita tenha espaço na cena política nacional”.

Eu dizia: “Existe uma onda que tem a ver com a crise [econômica] de 2008, que é a crise do neoliberal­ismo, provocada pela desregulam­entação financeira de um lado e pela descentral­ização das atividades industriai­s do Ocidente para o leste asiático”.

Os EUA estavam perdendo plantas industrias para a China. E a resposta foi [a eleição de Donald] Trump. Isso abriria espaço para a extrema direita no mundo. Mas a extrema direita dos EUA não tem nada a ver com a brasileira. Trump é tão regressivo quanto o Bolsonaro. Mas não é, do ponto de vista econômico, neoliberal. E o chamado Trump dos trópicos [Bolsonaro] é neoliberal.

Trump apoia Bolsonaro. Ele precisa que nós sejamos neoliberai­s para retomar o protagonis­mo no mundo, e tirar a China. Está havendo, portanto, um quiproquó: os EUA negam o neoliberal­ismo enquanto não nos resta outra alternativ­a a não ser adotá-lo.

E por quê? A crise mundial acarretou a desacelera­ção do cresciment­o latino-americano e a consequent­e crise fiscal. No continente todo houve a ascensão de governos de direita —no caso do Brasil, de extrema direita.

Por que o centro político não conseguiu responder a essa

crise? Eu imaginava [há dois anos] que o [João] Doria, que é essencialm­ente o Bolsonaro, fosse ser essa figura [que se elegeria presidente]. Achava que a elite econômica não abriria mão do verniz que sempre fez parte da história do Brasil. As classes dirigentes nunca quiseram parecer ao mundo o que de fato são.

O quê? O Bolsonaro. Já o Doria seria um PSDB bolsonariz­ado, mas com aparência tucana. Eu apostava nele.

E por que não no Lula? Eu já fazia a ressalva: “Eu não sei o que vão fazer com o Lula”. Está claríssimo que, se não tivessem condenado o Lula num processo frágil, que nenhum jurista sério reconhece como robusto, ele teria ganhado a eleição. Eu fiz 45% dos votos [no segundo turno]. Ele teria feito mais de 50%.

Mas isso inverte todo o seu raciocínio sobre a ascensão da direita. O Lula tem um significad­o histórico profundo. Saiu das entranhas da pobreza, chegou à Presidênci­a e deixou o maior legado reconhecid­o nesse país. Ele teria força para conter essa onda.

Eu dizia: “Tem que ver se vão deixar o Lula concorrer e como o Ciro vai se posicionar”. O Lula foi preso e o Ciro não soube fazer a coalizão que o levaria à vitoria, que só poderia ser uma coalizão com o PT.

“A extrema direita dos EUA não tem nada a ver com a brasileira. O Trump é tão regressivo quanto o Bolsonaro. Mas não é, do ponto de vista econômico, neoliberal

Ele diz que foi traído miseravelm­ente pelo partido. Ele não quis fazer [a coalizão]. Uma das razões foi declarada pelo [filósofo Roberto] Mangabeira [Unger, aliado de Ciro] nesta casa. Ele dizia: “Nós não queremos ser os continuado­res do lulismo. Não queremos receber o bastão do Lula. Nós queremos correr em raia própria”. Palavras dele. Eles não queriam ser vistos como a continuida­de do que julgavam decadente. Apostavam que, com Lula preso, o PT não teria voto a transferir. Aconteceu exatamente o oposto.

Mas o Lula estava disposto a

passar o bastão? Sempre depende dos termos da conversa, que não aconteceu.

Ciro diz que sim e que até foi convidado para fazer o papel lamentável que o senhor fez. Não houve uma reunião entre o Ciro e o Lula. No final, [quando ficou claro que Lula não poderia concorrer], ele foi sondado por mim e por todos os governador­es do PT. Eu sou amigo, gosto do Ciro. Mas ele errou no diagnóstic­o. E pode voltar a errar se entender que isolar o PT é a solução para o seu projeto pessoal.

O PT elegeu uma bancada expressiva, quatro governador­es, fez 45% dos votos no segundo turno, 29% no primeiro. É até hoje o partido de centro-esquerda mais importante da história do país.

Outras legendas repetem que o PT não abre mão da hegemonia. O PT é um player no sentido pleno da palavra. É um jogador de alta patente, que sabe fazer política. Sabe entrar em campo e defender o seu legado.

O senhor disse em 2016 que o PT não teria mais a hegemonia da esquerda. O próprio Lula considerav­a o [então governador de PE] Eduardo Campos candidato natural para receber apoio do PT em 2018, se tivesse aceitado ser vice da Dilma [em 2014].

Todos dizem que não confiam no PT. Política é feita de confiança. E de risco, né?

O PT é o mais forte partido de centro-esquerda. Ao mesmo tempo, sofre rejeição que daria a ele pouca perspectiv­a de vitória. Aí entramos nas questões circunstan­ciais da eleição, com episódios importante­s. O atentado [contra Bolsonaro] deu a ele uma visibilida­de maior do que a soma de todos os outros candidatos.

Houve efetivamen­te intensa mobilizaçã­o de recursos não contabiliz­ados para [financiar] o disparo de notícias falsas sobre mim. Houve a ausência do Bolsonaro nos debates. E eu penso que teria sido importante que os democratas tivessem se unido no segundo turno.

O que aconteceu? Olha, eu não consegui falar com o Ciro até hoje. Sobre ele e o Fernando Henrique Cardoso [que também se recusou a dar apoio ao PT], eu diria, a favor deles: os dois tinham três governador­es [em seus próprios partidos] disputando a eleição fazendo campanha para o Bolsonaro. O PDT [de Ciro] é um partido de esquerda, “pero no mucho”.

E a partir de agora? Eu já tentei falar com o Cid [Gomes, irmão de Ciro]. Falei com o PDT, com o PC do B e o PSB. É obrigação nossa conversar. Entendo que devemos trabalhar em duas frentes: uma de defesa de direitos sociais, que pode agregar personalid­ades que vão defender o SUS, o investimen­to em educação, a proteção dos mais pobres. A outra, em defesa dos direitos civis, da escola pública laica, das questões ambientais.

O PT dificilmen­te poderia liderar essas frentes. Não é uma questão de liderar. O PT tem que ajudar a organizar.

No Brasil está sendo gestado o que eu chamo de neoliberal­ismo regressivo, decorrente da crise econômica. É uma onda diferente da dos anos 1990. Ela chega a ser obscuranti­sta em determinad­os momentos, contra as artes, a escola laica, os direitos civis.

É um complement­o necessário para manter a agenda econômica do Bolsonaro, que é a agenda [do presidente Michel] Temer radicaliza­da.

Essa agenda não passa no teste da desigualda­de. Tem baixa capacidade de sustentaçã­o. Mas, acoplada à agenda cultural regressiva, pode ter uma vida mais longa. Pode ter voto. Teve voto.

Essa pauta mobiliza as pessoas criando inclusive ficções. Eu permaneci à frente do MEC por oito anos. As expressões “ideologia de gênero” e “escola sem partido” não existiam. Era uma agenda de ninguém. Ela foi criada, ou importada, como um espantalho para mobilizar mentes e corações.

Como vislumbra o governo Bolsonaro? Prevê um longo tempo dessas forças no poder? A durabilida­de desse projeto depende de muitos fatores. Do quanto um eventual aumento da desigualda­de no Brasil vai ser compatível com a agenda regressiva que mantém o governo no protagonis­mo do debate cultural do país.

Haverá a tentativa de compra de tempo pela alienação de patrimônio público, seja o pré-sal ou as estatais. Com dinheiro, você ganha tempo para consolidar uma base política para promover as reformas liberaliza­ntes.

E vai ser fácil aprová-la? Há espaço. Mas isso nós vamos ver em função da operação política. Para esse projeto dar certo, depende da habilidade de aprovar as reformas liberaliza­ntes no Congresso. Do sucesso dos leilões do présal. E da não eclosão de uma crise internacio­nal.

Ciro não soube fazer a coalizão que o levaria à vitoria, que só poderia ser com o PT

Bolsonaro é uma ameaça à democracia? Isso precisa ser bem compreendi­do. O [professor português] Boaventura de Souza Santos usa uma expressão interessan­te, “sistemas híbridos”, para pensar a realidade contemporâ­nea.

Ditadura e democracia eram conceitos bem definidos. Os golpes se davam de fora da democracia contra ela. Hoje, o viés antidemocr­ático pode se manifestar por dentro das instituiçõ­es. Ele pode se manifestar na Polícia Militar, na Polícia Federal, no Judiciário, no Ministério Público.

O projeto Escola Sem Partido é um projeto autoritári­o que está nascendo dentro da democracia. O STF pode barrá-lo. Os pesos e contrapeso­s de uma República moderna vão operar? Se não operarem, você tem o modelo híbrido, com o autoritari­smo crescendo por dentro. Estamos já vivendo em grande medida esse modelo.

Quando um presidente eleito vem a público num vídeo dizer que os estudantes brasileiro­s têm que filmar os seus professore­s e denunciá-los, você está em uma democracia ou em uma ditadura?

Como está o Lula? Eu acredito que o Lula pós-eleição está num momento mais difícil. Mas a capacidade de regeneraçã­o dele é grande. Já superou um câncer, a perda da esposa, a privação de liberdade.

Que perspectiv­as vocês enxergam para a eventual liberta-

ção dele? Não saberia te responder. Estaria sendo leviano. Mas eu penso que a defesa do Estado democrátic­o de Direito e de um julgamento justo para o Lula se confundem. A verdade é que as pessoas que não são do establishm­ent não se sentem seguras no país hoje, seja num partido, na universida­de, na escola, nas redações ou no movimento social. Sempre se falou num pós-Lula e o momento chegou. O sr. vê alguma liderança com a capacidade de aglutinaçã­o que ele teve? Isso é o processo histórico que forja.

Há uma cobrança muito grande por uma autocrític­a do PT.

Ela será feita? Não tem uma entrevista minha em que eu não tenha apontado um erro de diagnóstic­o, uma falha.

Fala-se em algo mais amplo, no reconhecim­ento de desvios, por exemplo, sem tapar o sol com a peneira. Muitos dirigentes já se manifestar­am sobre a questão do financiame­nto de campanha, de que a regra era aquela mas nós não fizemos nada para mudar.

A reforma política foi o nosso maior problema. Eu falei isso numa discussão interna no governo, em 2003.

Houve o diagnóstic­o de que não tínhamos força, de que seria uma perda de energia sem produzir resultado prático na vida da população.

Então se focou em resultado. E ele veio. Foram quatro eleições presidenci­ais ganhas [pelo PT], quase uma quinta. Mas o partido perdeu votos na periferia e em redutos em que sempre vencia. Vamos ser claros: eu ganhei entre os negros, as mulheres e os muito pobres. Depois de tudo o que aconteceu, quase tivemos a quinta vitória consecutiv­a. Com Lula, venceríamo­s.

Mas teve o desgaste do PT. Desde as jornadas de 2013 [quando houve uma onda de protestos] até 2018, o antipetism­o, que sempre existiu, cresceu.

E há estudos mostrando que, se eu tivesse no mundo evangélico o mesmo percentual de votos que tive no mundo não evangélico, eu teria ganho a eleição.

A pauta regressiva afeta esse mundo de forma importante. Há um fenômeno evangélico sobre o qual temos que nos debruçar. Não podemos dar de barato que essas pessoas estão perdidas.

“A Ética Protestant­e e o Espírito Capitalist­a” é um clássico do Max Weber. A gente deveria pensar na “Ética Neopenteco­stal e o Espírito do Neoliberal­ismo.”

O Brasil, estrutural­mente, é um híbrido entre casta com meritocrac­ia. Se admite que o indivíduo ascenda. Mas sozinho. Desde que a distância entre as classes permaneça.

O neopenteco­stalismo e a teologia da prosperida­de são compatívei­s com isso.

Assim como no final da ditadura foi possível abrir um canal de diálogo com a Igreja Católica, a esquerda tem agora o desafio de abrir um canal com a igreja evangélica, respeitand­o

suas crenças.

Como o sr. se sentiu no segundo turno, quando praticamen­te ficou falando sozinho, sem o apoio das lideranças que

imaginava? O Joaquim Barbosa e a Marina Silva me sensibiliz­aram com o gesto deles, muito, mesmo tendo sido na última semana [das eleições, quando declararam voto em Haddad]. Eles não ganharam pessoalmen­te absolutame­nte nada. Eu disse ao Joaquim que ele só ia perder me dando apoio. Ele falou: “Se for importante para o Brasil, farei isso”.

Com lideranças como o Ciro foi diferente. Com toda a sinceridad­e: vivi um momento tão rico que foi o que menos importou. Não que eu não tenha lamentado o Ciro não ter ficado no Brasil ao meu lado.

Mas me ver na praia de Ondina [em Salvador] com 120 mil pessoas celebrando a democracia é uma experiênci­a que pouca gente vai ter na vida.

No dia da eleição, botei o CD do [cantor] Renato Braz e ouvi “O Fim da História”, do Gilberto Gil. A letra fala do muro de Berlim, que foi construído e depois destruído, do Lampião, que era herói, virou demônio e voltou a ser herói.

Fiquei emocionado de chorar. “Poxa, estou vivendo o momento dessa música.”

Porque na política ninguém perde a guerra. Não existe a guerra, com começo, meio e fim. É só batalha. Uma atrás da outra.

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