Folha de S.Paulo

Chinês diz que criou bebês modificado­s geneticame­nte

- Reinaldo José Lopes

Um pesquisado­r chinês anunciou ter criado os primeiros bebês editados geneticame­nte —meninas gêmeas nascidas neste mês. “A sociedade decidirá o que fazer a seguir”, disse He Jiankui à Associated Press, sobre a permissão dessa técnica.

Não surpreende que os primeiros bebês com DNA editado tenham acontecido na China. Com barreiras regulatóri­as mais frouxas do que a maioria dos países desenvolvi­dos e uma comunidade científica bem financiada, a potência asiática era o “ecossistem­a” natural para esse tipo de ousadia (ou temeridade).

Mas vale um olhar crítico quanto ao anúncio, ainda não revisado por outros cientistas —o padrão-ouro de confiabili­dade da ciência moderna.

Gerar uma criança com genoma “customizad­o” é mais simples do que clonar um humano (façanha que foi objeto de vários anúncios falsos na década passada). É algo já realizado de modo rotineiro com diversas espécies de animais.

Tampouco há algo de mágico na modificaçã­o escolhida, no CCR5, gene que possui a receita para a produção de uma proteína receptora na superfície das células de defesa. É nessa fechadura que o HIV se encaixa, abrindo as células humanas para a invasão viral.

Algumas pessoas carregam naturalmen­te uma mutação que faz com que elas não produzam direito o CCR5. Com isso, o HIV não tem como entrar em suas células —elas são imunes à Aids.

Isso só é possível, no entanto, se as duas cópias do gene da CCR5 fossem igualmente inutilizad­as (lembre-se de que todo mundo carrega duas cópias de cada gene no DNA, uma do pai, a outra, da mãe). As primeiras informaçõe­s sobre os experiment­os dão conta de que nem sempre esse objetivo foi alcançado —um dos bebês seria só um pouco mais resistente­s ao HIV do que a maioria das pessoas.

Ainda, quase toda variação genética envolve custos, além de benefícios. Há indícios de que a falta do CCR5 fragilize o organismo para infecções por flavivírus. E a Crispr pode produzir efeitos não desejados.

Não se pode esquecer que a biotecnolo­gia é um negócio global multibilio­nário. O anúncio, portanto, soa afoito do ponto de vista científico e tem um inevitável componente de marketing.

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