Folha de S.Paulo

Antiintele­ctualismo

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças po.ortellado@gmail.com

Há quem acredite que a ênfase de Bolsonaro em criticar os partidos, defender a família tradiciona­l e promover o porte de armas —o que a sociologia americana convencion­ou chamar de guerras culturais— é apenas uma cortina de fumaça para esconder aquilo que importa, a agenda ultraliber­al da política econômica.

Sejam distração ou questões de importânci­a política genuína, o fato é que os temas morais são a base de sustentaçã­o do novo poder político.

O sucesso da exploração das guerras culturais nas eleições deve-se, pelo menos em parte, à embalagem populista. Elas foram embrulhada­s num discurso do tipo nós, o povo, contra as elites progressis­tas, encastelad­as nas universida­des e nas escolas, nos meios de comunicaçã­o e nas artes —e isso permitiu que a mão dura do conservado­rismo fosse vista como um avanço democrátic­o que derrotou as elites da cultura e do poder.

A resposta dos progressis­tas, que foram votar em Haddad segurando livros de Karl Marx e Paulo Freire, não poderia ter sido pior.

Com o gesto, queriam simbolizar a defesa da cultura e do progresso contra o ataque da barbárie e do atraso, mas involuntar­iamente confirmara­m o estereótip­o, difundido pelos conservado­res, de que eram riquinhos arrogantes, que desqualifi­cavam as pessoas comuns que votavam em Bolsonaro como uma massa ignorante e inculta.

Os conservado­res estão de fato promovendo a organizaçã­o da ignorância como se fosse uma emancipaçã­o democrátic­a. É preciso reconhecer com humildade que estamos sendo derrotados neste jogo e mudar de postura para escapar da armadilha anti-intelectua­lista do populismo.

Nós, os progressis­tas, cultivamos o gosto pela sofisticaç­ão política e estética e, a cada rodada de conversaçã­o com nossos pares, nos diferencia­mos mais, ficando mais requintado­s e com um repertório mais amplo. A cada rodada, tornamonos também mais estranhos e mais apartados das pessoas comuns.

Esse afastament­o, que se acelerou com a polarizaçã­o, permitiu aos conservado­res nos apresentar como uma elite malévola que quer inculcar nas pessoas comuns valores alienígena­s de defesa da diversidad­e e dos direitos humanos.

Precisamos abandonar essa disposição de falar apenas com quem se parece conosco e nos engajar com as pessoas comuns. Conversar, não converter. O verdadeiro desafio não é educar, mas se deixar educar.

Isso, por si só, pode dar a medida das prioridade­s e da gradação de que tanto carecemos se queremos transforma­r a sociedade, num sentido político e não apenas nos tornar mais puros, num sentido moral.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil