Folha de S.Paulo

Desastre ambiental foi o maior da história do país, com 19 mortos

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Em 5 de novembro de 2015, a ruptura de uma barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco em Mariana (MG) matou 19 pessoas, produzindo também a maior catástrofe ambiental do país. Quase 40 milhões de metros cúbicos de lodo verteram da estrutura rompida. A massa viscosa atingiu o rio Doce, cobrindo boa parte do seu leito, e 16 dias depois alcançou o litoral do Espírito Santo, danificand­o ecossistem­as no caminho. Um ano após o desastre, a Justiça Federal tornou rés, em uma ação por homicídios e crimes ambientais, 22 pessoas, além das mineradora­s Samarco,

Vale e BHP e da empresa de engenharia VogBR. O processo segue correndo na comarca de Ponte

Nova, sem que os réus tenham sido julgados.

Três anos após tragédia, vítimas de Mariana enfim projetam suas novas casas

Um dos desafios urbanístic­os é reconstrui­r o distrito o mais perto possível do que havia anteriorme­nte e ao mesmo tempo trabalhar dentro dos parâmetros legais.

Com 375 hectares, o terreno adquirido para o novo Bento (uma antiga fazenda de eucaliptos no meio do caminho entre Bento original e o centro de Mariana) está em fase de terraplana­gem.

Embora o traçado urbano, o nome das ruas e as relações de vizinhança repitam o desenho original, a topografia é outra: a área antiga era mais plana, de várzea, e o novo terreno tem declividad­e maior. O projeto urbano foi aprovado pela comunidade em fevereiro, pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente, em junho, e ganhou alvará em 1º de agosto.

“Bento atingido tinha por volta de 50 hectares, com casas dentro de áreas de preservaçã­o permanente, formas irregulare­s de ocupação. Se você pegar o desenho urbano de Bento na origem você vai ver que ele é mais orgânico, que os lotes têm poligonais meio malucas. Os novos lotes têm áreas mínimas maiores do que as áreas que eles tinham lá, cresceu considerav­elmente”, explica Álvaro Braga, coordenado­r dos cerca de 25 arquitetos que trabalham no projeto, em um escritório no centro de Mariana.

Assim, famílias que tinham lotes de 75 m² ou 100 m² receberão um de 250 m². Em áreas de declividad­e acentuada, o lote mínimo é 600 m² para compensar o relevo.

No processo de cálculos, um dos pontos de conflito é definir o que entra como restituiçã­o (via direito à moradia) e o que entra como compensaçã­o (ou seja, é contabiliz­ado no valor de indenizaçã­o, outro capítulo do processo).

Um morador tinha um galinheiro, mas não quer mais criar galinhas. Ao mesmo tempo, quer uma piscina. Quanto vale um galinheiro e quanto vale uma piscina? A equação não é fácil.

O processo inclui ainda burburinho­s sobre as casas dos outros. Quem escolheu o quê, quem mudou de ideia depois que viu um projeto mais bonito ou uma solução melhor encontrada por outro morador.

Comandando uma equipe de 550 funcionári­os que deve crescer para 2.000 nos próximos meses, a engenheira civil e gerente de reassentam­ento Patrícia Lois, 48, discute agora com a comunidade como será o processo de licitação e a escolha da empreiteir­a para a construção do novo distrito, que tem custo estimado de R$ 132,5 milhões.

Até o momento, o projeto urbanístic­o e de casas foi desenvolvi­do por uma associação entre a Julião Arquitetos, empresa com sede em Alphaville (SP), e a Tecservice Engenharia, de Belo Horizonte.

“Eu falo: a obra é a parte mais fácil. A questão social é transversa­l, envolvendo pertencime­nto e retomada do modo de vida. Nesse sentido, a gente precisa ter calma e ter pressa. Quanto mais eles ficarem longe, as famílias mudam, os idosos envelhecem.”

Segundo ela, a entrega das casas deve acontecer em 2020, cinco anos após a tragédia. O novo distrito de Bento fica a 9 km do antigo Bento e a 8 km da sede urbana de Mariana.

Morador da antiga rua Cônego Veloso, Edel Santana, 61, trabalhava como motorista de van, no transporte de meninos e professore­s da Apae. No dia do desastre, esperava em casa a hora certa para sair.

“Começou a gritaria na rua. Subi as escadas até o terraço, a lama vinha, aquele barulhão. Aí que eu deduzi: ‘A barragem estourou’. Minha garagem tinha dois portões eletrônico­s que já não abriam com a fal--

ta de luz. Saí correndo quase um quilômetro, pulei muro, passei por baixo de cerca, nem olhei para trás. A lama levou toda a casa, arrancou até o piso. Tinha uma van 2014 que achei 5 km depois e uma Kombi 2012 que não achei até hoje.”

Depois da tragédia, Edel passou nove meses desemprega­do tomando remédios para dormir. “Ele perdeu a rota. Como dizem os mineiros, acabou o milho, acabou a pipoca”, afirma sua mulher, Cleinice Rezende de Sá, mencionand­o ainda certa discrimina­ção com os atingidos.

“No princípio é aquela comoção. Mas aí a Samarco fechou, desemprego geral. De quem é a culpa? Da comunidade de Bento. As pessoas que olham feio dizendo: ‘Vocês tão no hotel, vão receber dinheiro, vocês estão muito bem’.”

Na nova casa, Edel fez questão de manter visão panorâmica do terraço alto, aquele que salvou sua vida.

Oantigo distrito de Bento Rodrigues é hoje uma terra arrasada, em que ruínas das antigas casas, igreja e escolas dormem cobertas pela lama. Para acessar o local é preciso autorizaçã­o da Defesa Civil e, na maioria dos casos, acompanham­ento de algum antigo morador do povoado.

Enquanto alguns querem apagar a história e nunca mais pisar no local, outros voltam sistematic­amente nos dias de folga e até acampam nos finais de semana nas casas vazias que sobraram na parte alta.

Operador de máquina na Vale, um dos que retornam semanalmen­te é Antônio Quintão. Levando um facão na garupa da moto, ele visita a antiga casa, faz orações e pesca. Das duas residência­s da família restou só uma porteira, que colocará na nova casa com os dizeres “porteira da saudade, porteira da esperança”.

“Cada um tinha seu modo de vida, seu ganha pão. Nada de viver em casa alugada, com esmola de empresa”, diz com ar soturno.

Para Antonio Pereira Gonçalves, membro da comissão de atingidos e conhecido como Da Lua, um dos desafios é conter a ansiedade e manter a comunidade unida diante de todo tipo de oportunist­as.

“Todo mundo ficou desorienta­do, mas a gente não gosta nem de lembrar do que já passou. Uma comunidade do tempo dos bandeirant­es foi destruída em dez minutos. É um processo cansativo, mas a gente é incansável. O trabalho da comissão é ter calma, frieza, não ceder às pressões.”

Segundo ele, ainda não está definido o que acontecerá com o velho Bento.

“É um lugar muito visado, com a barragem, o dique. A empresa quer apagar a cena do crime, a gente não quer. Já está assinado, a comunidade lá permanece do jeito que está. A Igreja de Nossa Senhora dos Mercês, na parte alta, foi tombada. Queremos poder contar a história.”

“Só quero uma casa minha para onde possa voltar, pregar um prego e pendurar um quadro. Não vou furar parede na casa dos outros Antonio Alves, 73 aposentado, antigo morador de Bento Rodrigues

“Nada do que a empresa e a Fundação Renova estão fazendo é de espontânea vontade, mas fruto de pressão e de uma série de acordos e decisões judiciais exigindo atuação participat­iva Guilherme de Sá Meneghin promotor

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Fotos Lalo de Almeida/Folhapress
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Imagens J+T Projetos/Divulgação
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Lilian Cristina Soares e Cleisson Calixto, o Foguinho, cuja casa nova terá mais quartos que aquela que construíam quando a barragem estourou; acima e ao lado, imagens do projeto da nova casa
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A casa nova de Edel Santana, 61, e sua mulher, Cleinice Rezende de Sá manterá o terraço elevado, como o da residência antiga, de onde Edel viu a lama chegar; ao lado, o projeto da escola e do posto de saúde do novo distrito
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