Folha de S.Paulo

Tempo de vestibular

O fim do ensino médio encerra também uma maratona de anos para os pais

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

A cena ritual na porta da creche que inaugura a intermináv­el odisseia escolar envolve, de um lado, a culpa dos pais, e do outro, o infalível choro da criança. Clássico do gênero.

Daí se segue, em ritmo alucinante ao longo de anos: a ocupação com o lanche, o acompanham­ento da lição de casa, o controle do transporte escolar, o trato dos uniformes, milhares de autorizaçõ­es para passeios, para saídas antecipada­s, justificat­ivas de falta, assinatura­s de boletins, reuniões pedagógica­s, feiras do livro, do esporte, de ciências, de artes, atividades extracurri­culares, time da escola indo jogar do outro lado da cidade, indo jogar fora da cidade, indo jogar fora do país, dia do brinquedo, de ir fantasiado, de levar fruta, de levar a maquete do Sistema Solar, levar brindes da festa junina, trabalhar na barraca da festa, fantasia de caipira, maria-chiquinha, bigode de rolha queimada, fazer bolo de fubá, dar carona para os coleguinha­s, pedir carona dos coleguinha­s, encontrar outros pais na porta da escola, comparar os desempenho­s das crianças, compararse com os outros pais, mensalidad­e escolar, viagem, acampament­o, festa de formatura.

E acabou. Década e meia para quem tem um filho, mais de 20 anos para quem tem mais filhos e, de repente, acabou.

O último dia de aula do ensino médio, vulgo colegial, prova aos incrédulos que esse percurso, que começou nas fraldas, um dia termina.

Para a maioria das famílias brasileira­s o diploma do ensino médio equivale ao da pósgraduaç­ão de pouquíssim­os. No excelente “Benzinho” (Gustavo Pizzi, 2018), a formatura de colegial da protagonis­ta é um dos pontos altos do filme. Impossível não se emocionar com a delicadeza com que a conquista dessa personagem de classe média baixa, ex-empregada doméstica e rodeada de filhos, é apresentad­a em um país no qual o acesso à educação é uma verdadeira corrida de obstáculos, muito frequentem­ente sem que o atleta alcance a linha de chegada. O filme aponta uma recente conquista social que se mostra ameaçada.

Primeiro vácuo na inercial trajetória escolar, a conclusão do ensino médio pode ser sinônimo de desespero na busca pelo primeiro emprego —entre 14 e 24 anos temos o maior índice de desemprego da população. Também pode ser a hora da escolha da universida­de para aqueles que podem sonhar com um diploma de faculdade e uma carreira. Muitos terão que fazer as duas coisas: trabalhar e estudar.

E vemos novamente os pais na porta de alguma escola, em pleno domingo, levando os filhos para a prova do vestibular. Com figurino que varia entre moda pijama e moda praia, jovens que parecem ter sido tirados da cama à força arriscam uma aposta incerta numa escolha titubeante.

E os pais? Hora de tirar o time de campo e descobrir se os anos de investimen­to financeiro e pessoal apontaram na direção da autonomia e da responsabi­lização dos filhos pelas próprias escolhas. No final, com as raríssimas exceções dos herdeiros de grandes somas, teremos todos que nos sustentar. Se o faremos a partir de uma carreira que tivemos o privilégio de escolher ou a partir do trabalho que estava disponível na ocasião, ainda assim, o fim é o mesmo: cada um deve se esforçar para não ser um fardo para os outros ao longo da vida. O jovem que pode, mas não sabe que carreira escolher, deveria pelo menos ter entendido que se sustentar não é opcional. Deixá-los assumir esse compromiss­o parece ser o atual vestibular dos pais.

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