Folha de S.Paulo

Obras póstumas reveem artistas tirados de cena após overdoses

Prince tem talento realçado em disco só de voz e piano, e álbum de Lil Peep aviva angústia de expoente do emo rap

- Rafael Gregorio Divulgação

Piano & A Microphone 1983 Prince. Gravadora Warner. R$ 39,90; nas plataforma­s de streaming

O príncipe está nu em “Piano & A Microphone 1983”, álbum inédito de Prince (1958-2016).

Od iscoéo primeiro fruto de uma arqueologi­a do arquivo deixado pelo artista, um dos maiores nomes do pop nos anos 1980 e influencia­dor de gerações com sua mescla de rock, funk e dance music.

Vídeos e gravações de ensaios e shows vêm sendo catalogado­s há dois anos por Troy Carter, executivo do Spotify, com resultados publicados em princeesta­te.com.

Abolada ve zé este“Piano & A Microphone 1983”, disco cujo formato intimista foi retomado por Prince décadas depois, em sua última turnê.

As nove canções foram gravadas em voz e piano, em 1983, no estúdio que Prince tinha em sua casa em Chanhassen, Minnesota —o mesmo lugar onde ele morreu em 2016, aos 57 anos, após overdose acidental de um remédio opio ide, e que hoje abriga um museu.

A primeira impressãoé­a de um ambiente de intimidade. Prince está só, em seu lar, um pouco embriagado. O clima se revela na abertura, “17 Days”, na qual se ouve o músico pedindo para um técnico baixar as luzes e ajustar o eco da voz.

O ar de rascunho também se manifesta nas percussões em algumas canções, tanto com sons da boca quanto embatidas do pé no chão, enas fungadas ao microfone aqui e ali.

A maior parte das músicas se conecta umas às outras, e não raro elas aparecem como citações incompleta­s; é assim em “Purple Rain”, do álbum homônimo (1984) que, um ano depois, elevaria Prince ao status de mega celebridad­e.

Um dos ponto saltos do trabalhoéa versão de“Mary Don’t You Weep”, lançada em junho como um aperitivo.

Trata-se de um spiritual — canção de tradição oral, criada por negros com letra inspirada no cristianis­mo enas agruras da escravidão—célebre nos anos 1960 e 1970 nas vozes de James Brown e Aretha Franklin.

Outros destaques são versões de músicas de Prince que depois fariam sucesso, como “Strange Relationsh­ip”, do disco “Sign O’ The Times” (1987).

Há ainda um arranjo de “A Case of You”, da cantora Joni Mitchell, e as inéditas “Why the Butterflie­s” e “Cold Coffee & Cocaine”, de um narrador cansado da namorada que só oferece café frio e cocaína.

A nudez e o experiment­alismo do álbum guardam ambígua propriedad­e. Por um lado, fazem da obra uma experiênci­a mais rica para os fãs, com vislumbre inusitado do artista antes de se tornar o ícone extravagan­te de uma década, herdeiro de nomes como James Brown, Stevie Wonder e Sly and the Family Stone.

Para quem já conhece o trabalho do compositor, também é interessan­te especular sobre certo senso de grandeza; mesmo só, em seu estúdio caseiro, Prince canta como o faria para as multidões que, parece saber, o aguardavam.

Por outro lado, a aparente precarieda­de torna o álbum atraente também a iniciantes.

Canções confeitada­s com camadas de estética dos anos 1980, cujos preceitos Prince ajudou a moldar, revelam-se como vieram ao mundo.

Nuas, elas dão relevo à beleza das melodias e potenciali­zam o domínio de música e voz do artista, em especial em seus improvisos com dinâmica, respiração e ritmo.

Em suma, uma joia rara e cobiçada e, ao mesmo tempo, uma bela porta de entrada.

Come Over When You’re Sober, Pt. 2 Lil Peep. Gravadora Sony Music. Disponível nas plataforma­s de streaming Luisa Jubilut

Em novembro de 2017, a morte do rapper americano Lil Peep trouxe à tona a necessidad­e de um anti-herói por parte de uma geração.

A overdose de Gustav Elijah Åhr, aos 21 anos, causada por diversas substância­s, incluindo um remédio opioide, paralisou fãs que haviam atribuído a ele o futuro de um gênero em ascensão: o emo rap.

Um ano depois, a história dele ganha novo capítulo em “Come Over When You’re Sober, Pt. 2”, continuaçã­o de seu primeiro e único disco.

O projeto, produzido por Smokeasac e George Astasio of IIVI, retoma o som do rapper de onde ele havia parado.

Surgido no SoundCloud, Peep abraçava melodias imperfeita­s, ruídos, batidas de trap, guitarras melancólic­as e samples de bandas como Death Cab for Cutie e Modest Mouse.

Ao fundo, vocais com efeitos e letras explícitas sobre angústia, depressão, suicídio, abuso de substância­s e relacionam­entos turbulento­s.

A continuida­de fica clara nas primeiras faixas, “My All & Broken Smile” e “Runaway”. Ambas abordam amor e a persistent­e suspeita de falsidade. “Todos fingem que se importam”, ele canta. “Estava morrendo e ninguém estava lá.”

O conflito encontra força em “Cry Alone”, ponto mais alto do projeto. Nem a cocaína ou o “lean” —droga à base de xarope de codeína, refrigeran­te e opioides, também chamada de “purple drank”— abafam memórias doídas sobre a relação com o mundo.

O passado traumático segue protagonis­ta em “Leanin’”, sobre uma tentativa de suicídio. A negativida­de só recua em “Hate Me”, quando o rapper se deixa levar por romantismo e batidas mais dinâmicas.

O intervalo dura pouco. Gustav retoma a narrativa autodestru­tiva em “White Girl” e “Fingers”, que atinge o ouvinte em cheio: “Não vou durar muito tempo”. O silêncio ao final traz atmosfera conflitant­e, entre aliviante e tenebrosa.

Os demônios descritos no disco seguem à solta, assombrand­o nomes proeminent­es do rap, como Mac Miller, morto em setembro, aos 26.

De outro lado, fãs demandam artistas que falem sobre saúde mental, reduzindo o estigma e fazendo com que suas vítimas se sintam menos sós. Eles podem contar com mais um pouco de Lil Peep.

 ?? Chad Batka/The New York Times ?? No alto, o cantor Prince em imagem do livro ‘Picturing Prince: An Intimate Portrait’, lançado em 2017 pelo fotógrafo Steve Parke; acima, Lil Peep, artista do emo rap
Chad Batka/The New York Times No alto, o cantor Prince em imagem do livro ‘Picturing Prince: An Intimate Portrait’, lançado em 2017 pelo fotógrafo Steve Parke; acima, Lil Peep, artista do emo rap
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