Folha de S.Paulo

Samuca e a Selva mostra face atemporal das letras de Ronaldo Bastos

- Luiz Fernando Vianna

Tudo que Move É Sagrado Samuca e a Selva e convidados. YBMusic/Dubas. R$ 30

O artista que se torna alvo de um tributo está morto ou corre o risco de ver sua obra tratada como tal —consagrada, canônica. Nem de longe é o que acontece em “Tudo que Move É Sagrado”, CD em torno de composiçõe­s que têm letras de Ronaldo Bastos.

O projeto capitanead­o pela banda Samuca e a Selva e pelo produtor Mauricio Tagliari foi realizado com a inventivid­ade que Bastos merece. Ele participou, nos anos 1970, de movimentos como o Clube da Esquina e o coletivo de poesia Nuvem Cigana. Aos 70 anos, permanece se renovando.

Segundo o material de divulgação, buscou-se “pinçar aquelas lado B entre mais de 300 canções”. Se foi assim, não deu certo. A quase totalidade das 12 faixas é bastante conhecida.

Mas isso não é ruim, pois se permite comparar as gravações marcantes do passado com as de agora.

O CD começa com duas parcerias clássicas com Milton Nascimento: “Fé Cega, Faca Amolada” e “Cais”. Elas ganham surpreende­nte sotaque caribenho, com participaç­ões excelentes de Luedji Luna e Criolo.

Também não há caminhos fechados nos arranjos. Na versão à cubana de “Cais” cabe um acordeom. Em “Cravo e Canela” (outra parceria com Milton Nascimento, aqui com participaç­ão da moçambican­a Lenna Bahule), a percussão africana convive com guitarra e sopros.

Seria possível dizer que “Cravo e Canela” é uma das melhores faixas, mas todas são muito boas. O fato de Samuca e a Selva ser uma banda de música dançante, com quatro instrument­istas de sopros entre os nove integrante­s, já subverte as canções, que não nasceram com esse perfil.

“Chuva de Prata” (melodia de Ed Wilson) e “Sorte” (de Celso Fonseca) passeiam por Jamaica e Cuba, sendo a segunda cantada em espanhol ao lado da colombiana Victoria Saavedra.

As origens dos cantores que fazem duos com Samuca indicam como se almejou o imprevisív­el.

Liniker, de Araraquara, está na originalme­nte mineira (e agora soul) “O Trem Azul” (melodia de Lô Borges); a uruguaia Alfonsina na carioca “Codajás” (parceria com Danilo Caymmi, ambientada na casa que Tom Jobim teve no Leblon); o gaúcho Filipe Catto em “Viver de “Amor” (melodia do mineiro Toninho Horta); o pernambuca­no Siba no partido-alto “Circo Marimbondo”, lançado pelo coautor Milton Nascimento em dueto com Clementina de Jesus —e que agora ganha novos versos.

“Amor de Índio” (parceria com Beto Guedes) até tem flauta indígena e sons de pássaros, mas também conta com sopros de jazz band no arranjo.

Embora tenham alto valor em separado, as faixas soam ainda melhores se ouvidas juntas. Mostram a atemporali­dade da obra de Bastos, um dos principais letristas brasileiro­s, e a criativida­de de Samuca e a Selva, banda que merece ser mais conhecida.

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