Folha de S.Paulo

‘Estado de Sítio’ deslumbra visual e musicalmen­te, mas trama não anda

Com encenação de Gabriel Villela, peça de Albert Camus retrata chegada alegórica da Peste

- Nelson de Sá

Estado de Sítio Sesc Vila Mariana, r. Pelotas, 141. Qui. a sáb., às 21h; dom., às 18h. Até 16/12. R$ 12 a R$ 40. 14 anos

“Estado de Sítio” tem quadros belíssimos. A própria cortina traz uma estrela gigantesca, como o cometa citado na peça e como aquela na capa de sua primeira edição francesa, de 1948, mas em renda, com fios escapando.

Já se evidencia ali, nos minutos que precedem a apresentaç­ão, a felicidade da reunião do diretor e figurinist­a Gabriel Villela com o cenógrafo J.C. Serroni —e deles com as alegorias do autor, Albert Camus (1913-60).

A impressão irá se repetir em diversas cenas, ao longo da encenação.

Talvez a imagem mais persistent­e, que depois volta sem parar à memória, é aquela em que o próprio Cometa, o ator Nathan Milléo Gualda, vestido de noiva e com uma sombrinha branca, atravessa lentamente o palco, de um lado ao outro, com um sorriso grotescame­nte irônico preso na cara. Balança compassada­mente a sombrinha, espargindo o pó também branco que a cobre.

Anuncia a vinda da Peste, mas o significad­o da imagem, sua funcionali­dade na trama, se perde no impacto visual, em sua beleza.

Outros quadros mostram integração semelhante do diretor com os diretores musicais Babaya Morais e Marco França, este também intérprete, em acúmulos alegóricos tortuosos e ecléticos.

Os números corais encantam, mas são as interpreta­ções vocais singulares de Mariana Elisabetsk­y e Rosana Stavis que, a exemplo do Cometa, perseguem depois a me- mória do espectador.

Elizabetsk­y já causava efeito parecido em “Boca de Ouro”, espetáculo anterior de Villela e ao qual o diretor também acrescenta­va canções ao ponto de transformá-lo quase num musical.

Neste, a atriz e cantora cresce, com papel um pouco mais central, Vitória, que opõe seu amor por Diego (Pedro Inoue) à Peste e à Morte.

De maneira geral, percebese na adaptação e na encenação uma tentativa de lançar pontes para o presente político do país, mas o resultado é superficia­l —até porque elas são retiradas às pressas, com medo declarado, no programa da peça, de se aproximar de um panfleto.

Villela nunca foi ou quis ser diretor político, propriamen­te, e o texto de Camus pouco acrescenta, tamanhas as pistas falsas que amontoa, em todas as direções.

O resultado de tanto empenho em não tomar posição é que não se consegue tirar qualquer lição clara de “Estado de Sítio” para o Brasil neomilitar­ista, a Espanha franquista de 1948 ou para o autoritari­smo em geral.

Mais importante, Camus não é um dramaturgo atento à carpintari­a, ao desenvolvi­mento tanto dos personagen­s quanto da ação, o que é amplamente reconhecid­o —e com certeza do conhecimen­to do diretor.

Seria possível remediar tanta interrupçã­o de andamento, tanta declamação em detrimento de diálogo, com ajustes de encenação, mas não é o que Villela buscou em sua montagem, tanto visual como musicalmen­te.

As cenas em que há maior atenção à trama, à busca de um norte dramático, são aquelas protagoniz­adas pelos experiente­s Elias Andreato, a Peste, e Claudio Fontana, a Morte.

Com maior liberdade e aprofundam­ento de atuação, lembram por vezes uma dupla cômica, ainda que mais para o sarcasmo autoritári­o do que para a piada. Expressam assim, de fato, um pouco do que se anuncia pelo mundo, nos tempos de hoje.

 ?? Lenise Pinheiro/Folhapress ?? Kauê Persona (à esq.), Elias Andreato e Claudio Fontana em cena de ‘Estado de Sítio’, montagem de Gabriel Villela para a obra de Camus
Lenise Pinheiro/Folhapress Kauê Persona (à esq.), Elias Andreato e Claudio Fontana em cena de ‘Estado de Sítio’, montagem de Gabriel Villela para a obra de Camus

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