Folha de S.Paulo

Loucos de raiva

Viver em estado de histeria permanente ainda nos vai enterrar a todos

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Era Oscar Wilde quem dizia que o problema do socialismo é ocupar demasiadas noites. Bela frase, bela filosofia de vida. No caso, da minha.

A primeira vez que li essa máxima —teria 15, 16 anos— encontrei o meu reflexo no espelho. Não é só o socialismo que dá trabalho. É qualquer ideologia política que ocupe demasiadas noites.

Se o verdadeiro teste de um verdadeiro conservado­r é não ter a política no topo das suas obsessões, passei nesse teste há muito. Na adolescênc­ia, quando colegas de geração saiam para a rua com o propósito nobre de “mudar o mundo”, eu tinha sempre 10 ou 20 ou 30 prioridade­s esperando pelos meus cuidados.

Não mudei. O mundo também não. Ou mudou —para pior. Olho para todo lado —TV, jornais, redes sociais, amigos próximos, colegas distantes— e a política ocupa várias noites e várias vidas. Como explicar essa intensidad­e?

O escritor e filósofo Tristan Garcia tem um ensaio, que é apenas a primeira parte de uma trilogia anunciada, no qual explora o assunto.

Aconselho a qualquer editor brasileiro dotado de atividade cerebral.

O título é “The Life Intense” (li em inglês) e a tese de Garcia é uma espécie de réquiem à elegância, à sutileza, à “capacidade negativa” que Keats atribuía a Shakespear­e —a capacidade de aceitar a incerteza como algo de belo e humano.

Hoje, queremos novidade, radicalida­de, intensidad­e. O resultado é uma gritaria sem fim em que lunáticos diversos, de esquerda ou de direita, exibem em público, como aqueles tarados que gostam de ostentar a genitália no metrô, os seus entusiasmo­s.

No fundo, fazem lembrar Howard Beale, o personagem central de “Rede de Intrigas”, dirigido por Sidney Lumet.

Recordo-me desse filme porque, informa o New York Times, o ator Bryan Cranston (o imperdível Walter de “Breaking Bad”) vai encarnar Beale na Broadway a partir de 6 de dezembro.

“Hélas”, não estarei pela cidade. Mas é sempre possível ver ou rever o filme, que não envelheceu uma ruga. Pelo contrário, está mais jovem que nunca.

No centro da trama temos o referido Howard Beale (Peter Finch, em papel que lhe valeu o Oscar póstumo), em plena meia-idade, com vários fracassos pessoais e profission­ais no currículo. Quando é despedido, o veterano jornalista acaba por surtar ao vivo.

Em condições normais, esse desastre seria o último capítulo de qualquer carreira. No caso de Beale, é o grande jackpot: como afirma a produtora Diana Christense­n (uma gélida e deslumbran­te Faye Dunaway).

Beale é uma espécie de profeta insano que articula a raiva popular contra a corrupção, a crise, o desemprego —contra tudo e contra todos.

Uma frase dele, gritada para as câmeras, ficou célebre: “Estou louco de raiva e não vou tolerar mais isso!”. O que é “isso” ao certo?

Ninguém sabe. Mas a cidade inteira imita o gesto e berra das janelas, dos balcões, das ruas —uma catarse coletiva, irracional, selvática.

Previsivel­mente, o establishm­ent fica horrorizad­o com as jeremíadas de Beale. Incluindo o seu velho amigo Max (William Holden, no papel de uma vida), para quem o grande circo midiático é grotesco e desumano.

Mas o ibope não mente: a moribunda estação de TV ressuscita e o lunático adquire a autoridade de um sábio. Pelo menos, até mudar de ideias e torpedear o seu próprio sucesso com novas investidas de sinal contrário.

“Rede de Intrigas” foi filmado em 1976 (ano de boas colheitas; perguntem a minha mãe, que teve a mim). Quarenta e dois anos depois, percebemos melhor que Howard Beale foi realmente um profeta —dos nossos tempos. Ele personific­a a vitória da ignorância sobre o conhecimen­to; do emotismo sobre a racionalid­ade; da fúria sobre a dignidade.

E as massas que o seguem são as nossas massas: iradas por um difuso estado de coisas; sedentas por certezas absolutas (e absolutame­nte falsas); excitadas pela oportunida­de de soltar a franga e incendiar a capoeira.

De igual forma, o amigo Max representa as qualidades contrárias: alguém que está longe de ser perfeito; mas para quem até as imperfeiçõ­es são um pretexto para ser honesto, modesto e humano. Um dinossauro, portanto.

O filme não tem um final feliz, para usar um eufemismo. Nem poderia. Eis o seu aviso cômico, ou trágico: viver em estado de histeria permanente ainda nos vai enterrar a todos.

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Ângelo Abu

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