Perguntas e mais algumas dúvidas sobre a Coreia do Norte
Em dez dias, Folha foi levada a escolas, hospitais, circo, museus, metrô, residência, fábricas, fazenda e à fronteira Mercados, ônibus e locais frequentados no dia a dia ficaram fora do itinerário
Com passos lentos e graduais, a Coreia do Norte testa mudanças que já são notadas por observadores externos e pela própria população, relata a enviada Ana Estela de Sousa Pinto.
Em dez dias, a reportagem foi levada a locais como escolas, hospitais, circo e fábricas, mas pontos de convívio ficaram fora do itinerário. Acesso restrito e vigiado prejudica conclusões.
O que você gostaria de perguntar a um norte-coreano, se tivesse a oportunidade de visitar esse que é um dos países mais fechados do mundo? Leitores da Folha enviaram mais de 70 questões, e algumas delas estão respondidas nestas páginas, resultado de uma viagem de 10 dias, no final de outubro. É um recorte ainda mais restrito que o possível em condições normais de reportagem, porém. Como todo estrangeiro, a Folha foi sempre acompanhada de dois guias, que decidiam aonde ir e intermediavam as conversas. Muito foi visto e ouvido, mas o número de vozes e pontos de vista ausentes cria um ruído gigantesco. Só há dois voos listados no painel do aeroporto internacional de Pyongyang, capital da Coreia do Norte, numa terçafeira de outubro. Não é falha de informática. É o sinal, já na porta de entrada, de que esse é um país insulado.
Arranha-céus de ar futurista se destacam no horizonte, perfeitos para serem fotografados de longe —de perto, o acabamento mais rústico os recoloca no tempo presente.
Avenidas largas e sem tráfego, palácios de granito polido, hospitais com mais médicos que pacientes, trenzinhos elétricos que carregam crianças pelo jardim do orfanato: sobra estrutura em alguns pontos de Pyongyang.
E há talento de sobra para mostrar aos estrangeiros. Crianças tão jovens quanto de quatro anos desenham, dançam e tocam instrumentos com destreza. É missão dos professores “identificar a aptidão de cada criança e desenvolvê-la”, nas palavras de uma vice-diretora escolar.
Nenhuma visita começa sem um discurso em frente à imagem de ao menos um dos ditadores da dinastia Kim, apresentados como “querido líder presidente Kim Il-sung” (1912-1994), “grande líder general Kim Jong-il” (1941-2011) e “supremo líder marechal Kim Jong-un” (nascido em 1983 e à frente do país há sete anos).
Os guias mencionam quantas vezes cada um visitou o local e relatam como escolheram pessoalmente o terreno e deram instruções detalhadas sobre a arquitetura, a cor das paredes e até mesmo a forma como as crianças devem fazer fila para se servir no orfanato.
Fazer fila é algo que os norte-coreanos aprendem desde cedo e mantêm por toda a vida. Grupos de adultos uniformizados são vistos com frequência caminhando de três em três, em bloco. Ordem, asseio e disciplina são evidentes nas ruas principais.
As crianças são ensinadas ainda a adorar os líderes, chamados de “abeoji” (pai, pronuncia-se “abôdjí”), termo também usado para se referir a Deus. No jardim da infância, decoram suas biografias e cantam músicas sobre o amor deles por “seus filhos”.
Pela manhã, alto-falantes exortam a população a trabalhar duro pelo progresso do país, constrangido por sanções econômicas de várias origens e amplitudes.
No metrô, garotas uniformizadas tocam instrumentos e fazem coreografias para “animar os trabalhadores”.
O partido pede empenho das três armas de seu símbolo: foice, martelo e pincel — agricultores, operários e intelectuais.
Sobre os cerca de 20% que vivem nas zonas rurais recai o principal peso da pobreza. Com máquinas e fertilizantes escassos, tentam arrancar de apenas 15% do território do país os 5,5 milhões de t³ de grãos anuais necessários. Em Kaesong, ao sul do país, estudantes secundários ajudavam, sob chuva forte, na colheita de arroz. Num domingo, o dia oficial de descanso.
Na indústria, há maratonas para cumprir metas. Na fábrica de fios de seda Kim Jong-suk, elas duram 70 dias seguidos. Para facilitar a presença das operárias, há um alojamento para 320 pessoas.
A guia mostra um dos 40 quartos para 8 operárias cada, a cozinha de um dos andares e, no térreo, piscina com quatro raias e um spa.
Dos cientistas e técnicos, o regime pede sementes resistentes ao clima, energia alternativa e novas formas de fazer aço e plástico —para contornar a falta de petróleo.
Ao mesmo tempo, Kim Jongun parece favorecer algum grau de distensão econômica, com mais liberdade para mercado e mais autonomia para gerentes estatais.
Seus passos são lentos, graduais e tentam manter seguro o próprio regime. Mas mudanças já são notadas por observadores externos e pelos próprios norte-coreanos. Se a dinastia Kim sobreviverá a elas é uma pergunta que deve levar alguns anos para ser respondida.
1 País fechado/ país protegido Há alguma fonte de informação não oficial? Recebem informação de fora? Como funcionam as redes sociais?
Todo meio de comunicação é oficial: 5 jornais, 2 emissoras de rádio e 4 canais de TV —mas um deles, o esportivo, só vai ao ar aos sábados.
Os rádios têm o dial bloqueado, e ser flagrado com aparelho adulterado pode levar à prisão. O governo tenta também bloquear emissões de TV estrangeiras nas fronteiras.
Há banda larga em parte do país, mas a internet é proibida para norte-coreanos, com exceção de quem precisa tratar com o exterior a trabalho.
Estrangeiros podem acessar a web com celular especial, que impede ligações locais —1 giga pode custar mais de US$ 200 (cerca de R$ 700).
Hotéis internacionais, como o Pothonggang, oferecem wifi por US$ 1,40 cada dez minutos, após registrar o número do passaporte e conferir a assinatura do interessado.
“A internet é útil, mas muito perigosa. Há muita violência e informações danosas às crianças. As redes sociais impulsionaram a Primavera Árabe, e o que aconteceu? Hoje há ainda mais caos que antes”, diz a intérprete Kim Kum-yong, 26.
Os norte-coreanos possuem uma rede interna, a Kwangnyong, com informações autorizadas pelo governo. Em Pyongyang celulares são frequentes, mas a comunicação é por SMS ou ligações de voz. Não há redes sociais. Na chegada ao aeroporto, câmeras, computadores e material impresso são fiscalizados para evitar “propaganda capitalista”. Raros norte-coreanos podem viajar ao exterior, quase sempre a trabalho.
“Você me perguntou se é possível deixar o país. Muitos morreram tentando defender a nação. Se agora todos quiserem ir embora achando que vão ter uma vida melhor, quem vai trabalhar para garantir o futuro? Não é justo”, diz o guia Ko Kun-chol, 50.
2 Vida privada Como o sistema político repercute na vida cotidiana? Existe cena LGBT? O que espera do futuro?
Ro Kyong-ae, 54, funcionária pública aposentada, mora no 16º andar de um edifício construído para professores universitários —seu marido dá aulas de eletrônica na Universidade Politécnica.
Os dois vivem com o filho de 26 anos no apartamento de 220 m², 3 quartos, sala de estar, sala de jantar, cozinha, escritório e duas sacadas amplas.
Todos os móveis foram doados pelo Estado, diz Ae. Isso inclui a TV, um aquário, eletrodomésticos e o piano de armário, de pintura preta brilhante, que é tocado por seu filho.
No escritório há uma foto em que o marido aparece ao fundo de uma visita de Kim Jong-il à fábrica de alimentos em que ele trabalhava. Na estante do filho, livros técnicos e sete volumes da biografia de Kim Il-sung.
Sonhos para o futuro? Depois de seis segundos, Ae responde: “Servir bem para que meu esposo e filho tenham bons resultados. Como foram muito beneficiados pelo estado e pelo marechal Kim Jongun, espero que eles executem bem seus trabalhos e tragam desenvolvimento para o país”.
Casamento é festa importante no país. Ainda há os arranjados, mas são minoria. Espera-se que todos se casem, mas hoje isso ocorre mais tarde, entre 25 e 29 anos.
É crescente a contratação de fotógrafos e videomakers pelos noivos mais ricos. A Folha viu três dessas sessões, numa hospedaria e no Museu da Guerra —homenagear os líderes é parte do roteiro de núpcias. Divórcios são malvistos. Não se fala de sexo com crianças. Na puberdade, garotas têm aula de “educação higiênica”, e há educação sexual no final do ensino médio.
Homossexualidade é assunto inexistente no país.
3 Vida coletiva Como é a participação política? E a segurança pública?
No filme “A Camarada Kim Quer Voar”, exibido na Mostra de Cinema de São Paulo em 2013, o chefe de uma mina convence o pai da protagonista a deixá-la fazer carreira como trapezista. “Já não sei se ela é minha filha ou sua”, diz o pai. “Ela é filha da mina. É filha desta aldeia. É filha da nossa pátria”, ouve em resposta.
A supremacia do coletivo sobre o familiar e o individual fica clara logo na infância. No Jardim Kyongsang, por exemplo, crianças de 5 e 6 anos filhas de professores, artistas e jornalistas ficam de segunda a sábado. Só voltam para casa aos domingos.
“É para que os pais possam cumprir seus trabalhos atarefados sem se preocuparem”, diz a guia. São 5 edifícios e 14 mil metros quadrados. No refeitório, há 600 lugares, e as crianças dormem em quartos com oito beliches. Há jardins semanais em todo distrito.
Esquema semelhante existe na Cooperativa Jangchon, no subúrbio de Pyongyang. Seus 1.350 cooperados vivem em diferentes aldeias e, para facilitar o trabalho, as crianças ficam no jardim da infância por períodos de dez dias.
A partir da escola primária, já vão e voltam sozinhos, como os estudantes da capital. Por todo lugar é possível ver estudantes andando em grupos, enfileirados de três em três ou de mãos dadas.
É nessa etapa que as crianças entram para a primeira associação formal. No dia do nascimento de Kim Jong-il, o Dia da Estrela Brilhante, um feriado, são admitidas à Liga das Crianças e recebem um lenço vermelho que usam sobre os ombros. “Sempre alertas” é seu slogan.
Aos 14 anos entram para a Liga da Juventude. O serviço militar é obrigatório e pode chegar a dez anos, de acordo com a função.
Na maturidade, a associação passa a ser união da categoria profissional a que pertence.
Alguns são indicados para membros do partido. Para ser admitido, é preciso “ser fiel ao alinhamento político e fazer o que estiver ao seu alcance para defender a ideologia”, diz Ko. Há reuniões periódicas para discutir tarefas e fazer autocríticas e reparações.
Dinâmica semelhante acontece nos grupos que reúnem entre 20 e 40 famílias vizinhas. Os líderes, em geral mulheres de meia idade, são responsáveis por saber detalhes do comportamento dos outros.
Esse controle social é apontado como uma das causas da aparente segurança pública. Durante os dez dias em que esteve na Coreia do Norte, a Folha não viu um carro de polícia na rua, e nenhuma das janelas, nem mesmo as do térreo, têm grades.
Se os crimes comuns são raros, os crimes políticos, como ofender os líderes ou trabalhar contra o regime socialista, rendem longas penas de prisão em campos de trabalho, e podem afetar até mesmo a família dos condenados.
4 Uma só Coreia O que pensa da reaproximação das Coreias? E da reaproximação com os EUA?
Não existem mapas da Coreia do Norte na Coreia do Norte. Eles estampam a península toda, e o slogan “A Coreia é uma!” está em cartazes, apresentações musicais, selos e no discurso da população.
Fundado no século 10, o Estado Goryô (que deu origem a Koryo, e daí Coreia) reuniu habitantes da Ásia Central que migraram para a península há entre 6.000 e 8.000 anos.
Anexada em 1910 pelo Japão, a Coreia só saiu do jugo vizinho em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, para ser dividida entre os Estados Unidos, que ocuparam o sul do paralelo 38, e a União Soviética, que ficou com o norte.
Incapazes de achar uma solução de governança para toda a península, eles a dividiram em dois governos, em 1948.
A reunificação ambicionada pela ditadura norte-coreana segue o modelo “1 Estado, 2 governos”. Haveria um chefe de Estado comum, e atividades de defesa e diplomacia seriam unificadas, mas os regimes continuariam separados.
Reuniões nesse sentido vêm sendo feitas com o governo sul-coreano, pró-reunificação. Nos últimos encontros, os países firmaram acordos de “fomentar a reconciliação nacional, criar um ambiente pacífico de colaboração e avançar em uma reunificação que assegure economia equilibrada”.
A questão da economia é especialmente delicada, porque há um abismo de renda entre as Coreias do Norte e do Sul.
Os norte-coreanos não publicam estatísticas, mas analistas acreditam que a renda média dos sul-coreanos chegue a 40 vezes a de seus vizinhos do norte —mais de dez vezes a diferença de rendimento entre alemães ocidentais e orientais em 1989, quando caiu o Muro de Berlim.
Já nas relações com os EUA, “após 60 anos de enfrentamento, a confiança só voltará pouco a pouco”, segundo Ko Kun-chol, do Comitê Coreano de Intercâmbio Cultural com o Exterior.
O governo Kim Jong-un baixou neste ano o tom do discurso contra os americanos. Retirou das ruas cartazes em que caricaturas deles eram esmagadas pelos norte-coreanos e não desfilou armas nucleares da parada militar de 70 anos da República, em setembro.
Mas os EUA ainda são descritos como o principal inimigo externo do país.
“Os imperialistas americanos querem que abandonemos o programa nuclear, mas todos vimos o que aconteceu na Líbia. Agora há o caos, muito pior que antes. Assassinatos, destruição da economia, como na Síria, no Iraque, no Afeganistão, e os EUA não fazem nada. Estamos bem conscientes disso tudo”, diz Ko.
O governo americano é apontado como o maior empecilho à reunificação. “Juntas, as Coreias seriam uma nova potência mundial, e os EUA temem isso. Eles também não teriam mais desculpas para deixar suas tropas no sul”, diz Ko.
5 Domínio da mente Quais as disciplinas na escola? Têm aula de geografia? Como o professor é visto?
Em quatro fileiras de cadeirinhas, 16 crianças de 5 e 6 anos aguardam a sabatina. “Onde nasceu o querido líder Kim Il-sung?”, pergunta a professora.
A aluna escolhida aponta as mãozinhas para uma maquete que ocupa todo o centro da sala e recita a resposta oficial: em Mangyongdae.
As questões seguintes são sobre os pais de Kim Il-sung e a idade em que ele partiu para “liderar a luta contra o imperialismo japonês”. A cada resposta, todos aplaudem.
Professores são peças importantes para a manutenção do regime, diz a vice-diretora da Escola Secundária nº 1, Han Sun-hui. “Somos revolucionários profissionais. Como um jardineiro, precisamos podar as folhas e orientar o crescimento”, afirma ela.
É dos professores a responsabilidade —e o poder— de identificar os talentos de cada aluno e encaminhar suas carreiras. Na revista oficial Korea Today, por exemplo, a professora Kim Hyon-ok é elogiada por ter mudado o destino de uma aluna que desejava ser violinista.
“Observando a menina de perto, Kim Hyon-ok decidiu que ela era mais apta à ciência que à música, e assegurou que fosse enviada à Escola Secundária nº 1. Alguns anos depois a aluna ganhou uma competição acadêmica, graças ao diagnóstico preciso”, diz o artigo.
A vida dos Kim e sua ideologia são tema de disciplinas especiais, ensinadas desde a pré-escola, mas a visão do regime está presente também nas matérias regulares.
Na Escola Secundária nº 1, um professor de física mostrava cenas da Guerra da Coreia antes de explicar conceitos de balística. A história do conflito, que durou de 1950 a 1953, é contada em versão própria e exibida em três andares no Museu da Vitoriosa Guerra da Libertação da Pátria.
Segundo os norte-coreanos, foram os EUA, e não eles próprios, que atacaram primeiro. No final, “os imperialistas não tiveram outra chance a não ser se ajoelhar em frente ao nosso povo e implorar pelo fim da guerra”, diz o relato oficial.
Por dia, passam pelo local 3.000 visitantes, adultos e crianças. “Precisamos de museus como este porque as crianças não viveram o que vivemos. Elas não têm memória, então temos que mostrar a elas o que aconteceu”, diz o guia Ko.
Conquistar a adesão das crianças é crucial para o regime, porque há menos mecanismos de controle em comparação com as gerações anteriores.
O Estado já não é mais o único provedor de bens e serviços, como nas primeiras décadas da gestão Kim Il-sung, e começam a aparecer alternativas profissionais numa economia paralela à estatal.
Os 12 anos de educação básica são gratuitos e obrigatórios. Segundo o governo nortecoreano, a taxa de alfabetizados é de 100%. Não é permitido ter emprego estatal antes de terminar o ensino médio.
Cursar a universidade depende não só de obter boas notas, mas de ser corretamente encaminhado.