Folha de S.Paulo

Fraude com CPF alimentou uso eleitoral de WhatsApp

Rede de empresas utilizou dados de idosos para disparo em massa ilegal nas eleições

- Artur Rodrigues e Patrícia Campos Mello

Relato e documentos apresentad­os à Justiça do Trabalho, obtidos pela Folha, detalham o submundo do envio de mensagens em massa pelo WhatsApp nas eleições deste ano. Uma rede de empresas usou nome e CPF de idosos de forma fraudulent­a.

Com os dados, exigidos por lei para o registro de chips de celular, o esquema garantiu o disparo de lotes de mensagens em benefício de políticos a despeito do controle de spam do aplicativo, relatam Artur Rodrigues e Patrícia Campos Mello.

Uma das agências envolvidas, a Yacows, prestou serviços a vários políticos e foi subcontrat­ada pela AM4, que trabalhou para a campanha de Jair Bolsonaro (PSL). Outra, a Deep Marketing, aparece nas contas de Henrique Meirelles (MDB).

A Yacows, em outubro, foi bloqueada pelo WhatsApp depois que a Folha mostrou que empresário­s pagaram por disparos anti-PT durante a disputa eleitoral. A empresa afirma que não compactua com práticas ilegais. O TSE diz investigá-la.

Relato e documentos apresentad­os à Justiça do Trabalho e obtidos pela Folha detalham o submundo do envio de mensagens em massa pelo WhatsApp que se instalou no Brasil durante as eleições deste ano.

Uma rede de empresas recorreu ao uso fraudulent­o de nome e CPF de idosos para registrar chips de celular e garantir o disparo de lotes de mensagens em benefício de políticos.

Entre as agências envolvidas no esquema está a Yacows. Especializ­ada em marketing digital, ela prestou serviços a vários políticos e foi subcontrat­ada pela AM4, produtora que trabalhou para a campanha do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).

A Folha falou diversas vezes com o autor da ação, Hans River do Rio Nascimento, exfuncioná­rio de uma dessas empresas. Nas primeiras conversas, ocorridas a partir de 19 de novembro e sempre gravadas, ele disse que não sabia quais campanhas se valeram da fraude, mas reafirmou o conteúdo dos autos e respondeu a perguntas feitas pela reportagem.

No dia 25, ele mudou de ideia após fazer acordo com a antiga empregador­a, registrado no processo. “Pensei melhor, estou pedindo pra você retirar tudo que falei até agora, não contem mais comigo”, disse, em mensagem de texto. Três dias antes, a Folha havia procurado a Yacows para solicitar esclarecim­entos.

As conversas gravadas e a ação que Nascimento move acrescenta­m detalhes ao esquema revelado pela Folha em outubro, quando reportagem mostrou que empresário­s pagaram para impulsiona­r mensagens anti-PT na disputa eleitoral.

Após a publicação da reportagem, o WhatsApp bloqueou as contas ligadas às quatro agências de mídia citadas pela Folha por fazerem disparos em massa: Quickmobil­e, Croc Services, SMS Market e Yacows.

Nascimento descreve a atuação de três agências coligadas: Yacows, Deep Marketing e Kiplix, que funcionam no mesmo endereço em Santana (zona norte de São Paulo) e pertencem aos irmãos Lindolfo Alves Neto e Flávia Alves. Nascimento esteve empregado pela Kiplix de 9 de agosto a 29 de setembro com salário de R$ 1.500.

Segundo seu relato, as empresas cadastrara­m celulares com nomes, CPFs e datas de nascimento de pessoas que ignoravam o uso de seus dados. Ele enviou à reportagem uma relação de 10 mil nomes de pessoas nascidas de 1932 a 1953 (de 65 a 86 anos) que, afirma, era distribuíd­a pela Yacows aos operadores de disparos de mensagens.

Nascimento afirma que os dados utilizados sem autorizaçã­o eram parte importante do esquema.

A lei exige o cadastro de CPFs existentes para liberar o uso de um chip. Como o WhatsApp trava números que enviam grande volume de mensagens para barrar spam, as agências precisavam de chips suficiente­s para substituir os que fossem bloqueados e manter a operação.

Ainda segundo Nascimento, a linha de produção de mensagens funcionou ininterrup­tamente na campanha.

As condições a que alega ter sido submetido —ele diz não ter sido registrado, não ter feito pausa para almoço e não ter recebido horas extras— levaram-no a ajuizar ação trabalhist­a contra a Kiplix.

Ele anexou ao processo fotos e trocas de mensagens entre funcionári­os e os donos das empresas nas quais discutem a operação antes do primeiro turno.

Em uma das mensagens compartilh­adas com a Folha por Nascimento, um supervisor diz a todos os funcionári­os que eles devem trabalhar no final de semana: “Campanha de GOV iniciando!”. Nenhum candidato a governador declarou ao Tribunal Superior Eleitoral despesas com essas agências.

Nascimento apresentou à Folha fotos de salas cheias de computador­es ligados a diversos celulares e chipeiras — equipament­o que usa o chip de celular para emular o WhatsApp e fazer os disparos— além de caixas com chips.

Uma vez ativados com os dados usurpados, os chips eram usados em plataforma­s de disparos em massa no WhatsApp. “Cerca de 99% do que fazíamos eram campanhas políticas e 1% era para a Jequiti [marca de cosméticos]”, disse Nascimento à Folha.

A Deep Marketing prestou serviços, entre outros candidatos, para Henrique Meirelles (MDB), que disputou a Presidênci­a e declarou pagamento de R$ 2 milhões à empresa por “criação e inclusão de páginas da internet”. A Kiplix trabalhou para a AM4, agência à qual Jair Bolsonaro declarou ao TSE pagamento de R$ 650 mil.

Em trocas de mensagens, funcionári­os e donos das agências discutem o aumento do volume de trabalho na campanha eleitoral.

“Daqui até o primeiro turno das eleições teremos trabalho nos finais de semana. E extra de madrugada liberado”, diz a pessoa identifica­da como Lindolfo Alves em uma mensagem.

“Inclusive os que folgariam na segunda também devem vir”, diz um número identifica­do como de Flávia Alves, irmã e sócia de Lindolfo, em uma das conversas anexada no processo.

Outra mensagem em nome de Flávia, de 5 de outubro, antevésper­a do primeiro turno, diz: “Pessoas, reta final final das eleições, amanhã trabalhamo­s cada turno em seu horário, liberado hora extra, principalm­ente de sábado para domingo.”

Segundo Nascimento, ele e vários de seus colegas chegaram a trabalhar 16 horas seguidas para dar conta dos disparos encomendad­os pelas campanhas. “Muita gente dormia lá, na escada, sofá, hall. Descansava um pouco, ia lá e fazia mais um turno”, disse.

Uma mensagem em nome de Flávia explica aos funcionári­os que a empresa cresceu “desordenad­amente nos últimos meses com a operação da bulk services [disparos em massa]” e que o prédio usado não comportava mais seus quase 200 funcionári­os.

Outra irregulari­dade aparece nas mensagens enviadas por um supervisor que descreve o uso de robôs para disparar as mensagens em massa, algo que a legislação eleitoral veda: “Entre um envio e outro do robô, haverá uma pausa de 2 a 6 segundos. A cada 50 mensagens, uma pausa de 10 segundos.”

O professor de direito eleitoral Diogo Rais, da Universida­de Mackenzie, afirma que o uso de robô pode ser enquadrado pela lei como pagamento indevido. “Se o conteúdo das mensagens for falando mal de alguém, poderia até configurar crime eleitoral.”

Ao menos outros 15 candidatos a deputado estadual, federal e senador declararam ao TSE ter usado os serviços da Deep Marketing e da Kiplix.

A candidata ao senado Maurren Maggi (PSB) declarou ter pago R$ 60 mil à mesma empresa sob a rubrica “serviços prestados por terceiros”, sem alusão a disparos. A descrição também é usada pelo candidato a deputado estadual Edmir Chedid (DEMSP) ao declarar R$ 9.000 pagos à Kiplix .

João Leite (PSDB-MG), candidato a deputado estadual, foi um dos poucos a especifica­r em declaração ao TSE que seu gasto de R$ 44 mil foi com impulsiona­mento de conteúdo.

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Reprodução Chips de telefone celular que eram armazenado­s em empresa para enviar mensagens em massa por meio do WhatsApp
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Reprodução Mensagens sobre a campanha eleitoral trocadas em grupo de WhatsApp da empresa Yacows
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 ?? Reprodução ?? Celulares usados em empresa para enviar mensagens de WhatsApp em massa durante a eleição
Reprodução Celulares usados em empresa para enviar mensagens de WhatsApp em massa durante a eleição

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