Folha de S.Paulo

Sutilezas

- Marcos Lisboa Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

As últimas semanas foram marcadas por leves atritos entre a nova equipe econômica e o velho Congresso. Nada que não se possa ajustar, desde que se aprenda com os tropeços.

Governo não é uma empresa com hierarquia bem definida em que decisões devem ser obedecidas. Afinal, temos poderes independen­tes e, no caso do Congresso, ambas as casas são apenas coordenada­s pelo seu presidente, com muitas prerrogati­vas, mas também diversas limitações.

São muitos os interesses em meio a uma governança complexa, com decisões podendo ser tomadas rapidament­e na contramão dos objetivos do Poder Executivo. Além disso, medidas legais no Brasil são por vezes recheadas de sutilezas entre muitos parágrafos de leitura difícil e motivações nem sempre claras.

No caso do projeto de lei sobre a licitação do pré-sal (cessão onerosa), o mais recente atrito, há muito mais em jogo do que simples rateio de recursos com estados e municípios.

A mudança na regra de rateio está em outro projeto, neste caso sobre multas a serem pagas aos usuários de energia. Ele também destina parte dos recursos para o Brasduto, fundo que financia a expansão de gasodutos, e obriga a União a indenizar a Cemig em alguns bilhões de reais por usinas que a empresa não mais possui.

Além desses aspectos inusitados, a própria tentativa de mitigar o problema dos estados e municípios com recursos extraordin­ários tem se revelado uma maldição. Afinal, a sua crise decorre dos gastos recorrente­s com folha de pagamentos de servidores ativos e aposentado­s.

Há poucos anos, a renegociaç­ão das dívidas com a União e os recursos da repatriaçã­o aliviaram momentanea­mente o caixa de estados e municípios. A despesa recorrente, porém, continuou a aumentar com reajustes salariais e aposentado­rias precoces.

O oportunism­o resultou só em piora das contas públicas, com folhas de pagamento em atraso, redução da manutenção da infraestru­tura e carência crescente de serviços públicos.

O novo governo começa com grande apoio popular, mas falta definir a sua agenda até para organizar a política. A decisão sobre a partilha deve esperar a próxima legislatur­a, até para esclarecer as suas sutilezas. Uma reforma profunda da Previdênci­a é essencial para começar a equilibrar as contas públicas, e sem ela a crise de estados e municípios não tem solução.

Para isso, é preciso cuidar da política e construir sólidas maiorias, com o protagonis­mo dos estados na Previdênci­a, os seus mais imediatos beneficiár­ios.

A política requer clareza de prioridade­s e negociação entre poderes independen­tes, embasadas por muita técnica e atenção aos detalhes para saber exatamente o que está em jogo.

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