Folha de S.Paulo

Neofranken­stein

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

O chinês He Jiankui chocou a comunidade científica planetária ao anunciar que trouxe ao mundo um casal de gêmeas com seus genes alterados, através da técnica de edição de DNA Crispr-Cas9, para tornálas resistente­s ao HIV. Os próprios cientistas chineses não gostaram. Mais de cem deles assinaram uma carta em que se queixam do colega, afirmando que ele abriu a caixa de Pandora. Questionam tanto a segurança como a ética do procedimen­to.

Como Jiankui não publicou em nenhum periódico um relato científico de seu experiment­o, não sabemos se obteve êxito e nem mesmo se a história é real (já vimos fraudes em situações parecidas). Mas, supondo que o Jiankui tenha feito o que diz, qual é o problema?

Acompanho parte das críticas. Nossa ignorância sobre possíveis efeitos pliotrópic­os da edição genética ainda é muito grande para que se faça esse tipo de experiment­o com um nível razoável de segurança. Tampouco sabemos se todas as salvaguard­as éticas foram observadas por Jiankui ao obter a autorizaçã­o dos pais para o procedimen­to.

Há, contudo, uma segunda família de críticas da qual discordo. Não creio que a intervençã­o genética precise estar limitada à cura de doenças. Não vejo em princípio problema em utilizá-la para aprimorar a inteligênc­ia ou escolher caracterís­ticas físicas de filhos.

Pelo menos desde Mary Shelley e seu “Frankenste­in”, cultiva-se o mito romântico de que o homem não tem o direito de “desafiar a natureza” ou de “brincar de Deus”, como se houvesse uma moralidade intrínseca inscrita naquilo que é natural. Isso é pensamento religioso, não científico.

Uma forma de descrever o processo civilizató­rio é justamente o sucesso cada vez maior que obtivemos em dominar a natureza, aliviandon­os de suas tiranias. Foi assim com a agricultur­a, o vestuário, as técnicas de construção, a medicina. Não há motivo para nos intimidarm­os diante dos genes.

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