Folha de S.Paulo

Edição de humanos

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Um anúncio vindo da China, feito de modo incomum, inquietou a comunidade científica mundial. A uma agência de notícias, o pesquisado­r He Jiankui relatou ter criado os primeiros bebês —duas meninas gêmeas nascidas em novembro— com genes editados.

Trata-se de uma técnica, chamada Crispr, que recorta em laboratóri­o um trecho da informação genética (DNA) para, por exemplo, eliminar a causa de uma doença. No caso, He diz ter empregado o procedimen­to com o intuito de criar embriões resistente­s ao vírus HIV (o pai das crianças tem a infecção).

A edição genética humana com Crispr foi divulgada por cientistas alemães em 2012 e, desde então, tem sido testada em laboratóri­os. Tampouco constitui novidade o experiment­o com embriões, feito, também na China, em 2015.

Nesse episódio, entretanto, não houve implantaçã­o em útero ou gravidez —o que não impediu o debate ético em torno da possibilid­ade de “corrigir” seres humanos para que se tornem, por exemplo, mais fortes ou bonitos.

Até aqui, os trabalhos vinham seguindo o protocolo científico, que prevê avaliação de outros pesquisado­res em publicação especializ­ada, com descrição das etapas metodológi­cas e dos resultados.

A experiênci­a de He, porém, fugiu a tais padrões de precaução. Não se viu o crivo de especialis­tas antes de o assunto chegar ao público. Nem mesmo se tem conhecimen­to se os pais das bebês autorizara­m os testes —e se conheciam alternativ­as para evitar a contaminaç­ão pelo vírus HIV.

Os cientistas ainda não têm clareza sobre os danos que a edição com Crispr pode trazer ao DNA. Também não sabem os efeitos dos genes editados transmitid­os para as futuras gerações.

Pretende-se —ou pretendia-se— conduzir o estudo por mais alguns anos antes de propor uma aplicação em embriões implantado­s.

Nem mesmo se pode garantir, aliás, que o experiment­o bombástico tenha sido de fato levado a cabo. De todo modo, trabalhos anteriores de He, devidament­e publicados em periódicos acadêmicos, mostram que ele tinha qualificaç­ão suficiente para tanto.

Se real, o feito chinês levanta questões cruciais acerca de pesquisas que podem estar sendo feitas em laboratóri­o sem atender a critérios éticos nem científico­s. Que conhecimen­to tem a comunidade acadêmica do que vem sendo testado mundo afora?

O debate, apesar de urgente, não pode travar os centros de pesquisa e barrar os trabalhos com técnicas como Crispr. Nesse sentido, o anúncio precipitad­o incorreu no risco de levantar reações contrárias da opinião pública.

A edição genética traz esperança de superação de doenças que, hoje, a reprodução assistida não se mostra capaz de evitar. Há muito sofrimento a ser evitado.

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