Folha de S.Paulo

Descontrol­e com motos é a principal trava para frear matança no trânsito

Em 2016, segundo o governo federal, 32% das 37 mil pessoas mortas no trânsito eram motociclis­tas

- Fabrício Lobel e Bruno Santos

O médico Damito Xavier caminha em uma tarde de novembro pelos corredores do Hospital Regional do Cariri, em Juazeiro do Norte (CE), e faz um levantamen­to de vítimas de trânsito internadas ali.

Ao entrar em uma enfermaria, ele questiona um colega se algum paciente da ala se enquadra nesse perfil. “É mais fácil perguntar qual não é”, responde o responsáve­l.

José Vinícius, 20, um motociclis­ta que não tem carteira de habilitaçã­o, está internado para se recuperar da perna quebrada em um acidente de trânsito. Djanir, 38, está em estado vegetativo irreversív­el após uma colisão com a moto —estava sem capacete. Outro jovem, com perna recém amputada após acidente de moto, recebe uma dose de analgésico para suportar a dor.

Diminuir o gigantesco número de mortes no trânsito brasileiro é um dos desafios do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) a partir de 2019.

Segundo dados do Ministério da Saúde, 37 mil pessoas morreram nas ruas e estradas do país em 2016. O número equivale a uma morte a cada 12 minutos ou à queda de um jato lotado a cada dois dias.

Ainda que não tenha sido compromiss­o de sua campanha, Bolsonaro assumirá como líder do Executivo encarregad­o de atingir, até 2020, a meta de reduzir pela metade as mortes no trânsito brasileiro em relação a 2010 —quando houve quase 43 mil casos. O pacto foi firmado junto à ONU.

Sendo assim, o próximo governo teria que dar uma guinada histórica, evitar 16 mil mortes no trânsito e atingir a casa de 21 mil ao ano. Desde 2010, as mortes subiram a até quase 45 mil em 2012, para começarem a cair em 2015, mas seguem distantes da meta.

O desafio aumenta diante de posicionam­entos anteriores do futuro presidente, que, como deputado, fez projetos para abrandar a punição aos infratores de trânsito.

Por improvável que seja o cumpriment­o da meta, o governo Bolsonaro será cobrado para iniciar um novo ciclo de redução das mortes, afirma Pedro de Paula, coordenado­r da Iniciativa Bloomberg para Segurança Global no Trânsito.

“A meta da ONU é impossível de ser alcançada até 2020. Mas o próximo governo terá uma nova chance”, diz, ao citar o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito, aprovado neste ano no Congresso, com novas metas de redução de mortes até 2028.

Segundo especialis­tas, entre os avanços na segurança viária nos últimos anos estão a criação da lei seca, a obrigatori­edade de cadeirinha­s para transporte de crianças e o aumento do valor das multas.

Mas há ainda muito a ser feito, como reforço da fiscalizaç­ão, mudança na formação dos condutores e incentivo à educação de trânsito. Para Pedro de Paula, o governo pode ainda voltar a incentivar o transporte público nas cidades, baixando a atrativida­de por modais individuai­s, mais perigosos e ineficient­es.

Nas últimas décadas, o principal acelerador das mortes nas ruas e estradas brasileira­s foi o forte aumento de motociclet­as nas vias. O fenômeno é explicado em parte pelo maior acesso a crédito e incentivos à industria automotiva.

“Hoje é mais barato pagar pela parcela de uma moto do que pela passagem do ônibus”, exemplific­a José Aurélio Ramalho, presidente do ONSV (Observatór­io Nacional de Segurança Viária).

Em 2000, a frota de motociclet­as (que é naturalmen­te mais exposta a riscos) era de pouco mais de 3,5 milhões de unidades no país. Já em 2016 saltou para quase 21 milhões.

A participaç­ão deste transporte nas vias brasileira­s saltou de 12% para 22% do total de veículos —a de carros caiu de 57% para 55%. Atualmente estados como Maranhão, Piauí e Ceará têm mais de 44% de sua frota composta por motos. Em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e DF esse índice fica abaixo dos 16%.

O súbito aumento da frota não foi devidament­e acompanhad­o por educação no trânsito e fiscalizaç­ão. No mesmo período (2000 a 2016), as mortes de motociclis­tas saltaram de cerca de 2.500 por ano para mais de 12 mil.

Motociclis­tas passaram a ocupar o topo do ranking de vítimas no trânsito no Brasil em 2009. E essa liderança perversa se amplia a cada ano.

Em 2016, segundo o Ministério da Saúde, 32% das mortes eram de motociclis­tas

Os estados do Norte e Nordeste tiveram o maior salto na presença desses veículos em suas ruas. Também foram eles que viram seus índices de inseguranç­a viária piorarem.

Em 2017, por exemplo, o Ceará foi o estado que demandou o maior número de indenizaçõ­es do DPVAT (seguro automotor obrigatóri­o) por mortes e feridos em acidentes no trânsito. Juazeiro do Norte, no sertão cearense, tem o dobro de indenizaçõ­es concedidas por habitante na comparação com a capital Fortaleza.

Estados com maior número de indenizaçõ­es do seguro obrigatóri­o por acidentes de trânsito, em 2017

As constantes cenas de desrespeit­o às legislaçõe­s de trânsito no município ajudam a explicar o alto índice de acidentes. Na cidade, é fácil flagrar motoristas sem cinto de segurança e principalm­ente motociclis­tas sem capacete ou transporta­ndo dois ou até três passageiro­s.

O sindicato de Auto Escolas do Ceará critica a falta de fiscalizaç­ão. Para o representa­nte da entidade em Juazeiro do Norte, Lauro Duarte, há em vários locais do país uma forte presença de condutores que atuam sem CNH.

Segundo especialis­tas, é por isso que alguns estados do Nordeste têm vendas de motociclet­as muito superiores ao número de habilitado­s.

Um desses motociclis­tas é o vendedor Marcus Vinícius Alencar. Aos 18 anos, diz pilotar desde os 12, em sua cidade natal, Aiuaba (CE). “No interior, é assim desde criança, para qualquer tarefa de casa a gente pega a moto. Meu irmão de 10 anos já sabe pilotar.”

O jovem frequenta uma auto-escola para conseguir sua habilitaçã­o. A reportagem contou ao menos seis de seus colegas que chegaram à aula já pilotando suas motociclet­as, o que é proibido por lei.

Quem também sempre conduziu sem habilitaçã­o é José Vinícius do Santos Filho, 20. Ele pilotava sua moto quando, ao disputar espaço com um veículo, caiu e quebrou a perna. Após a colocação de pinos na tíbia, permanecer­á internado até a cirurgia definitiva.

O Hospital Regional do Cariri convive diariament­e com a tragédia do trânsito. A unidade é referência no atendiment­o de politrauma­tismo e recebe pacientes de uma área de 45 municípios cearenses.

Dos 19 mil atendiment­os de emergência feitos ali de janeiro a setembro deste ano, cerca de 2.500 (ou 13%) são decorrente­s de acidentes automobilí­sticos. Os motociclis­tas são 65% desses casos e, em metade dos atendiment­os, os pacientes não usavam capacete.

“O paciente de politrauma­tismo é muito caro ao sistema de saúde, pois exige muito tempo e atenção médica. Existem pacientes que estão aqui há quase um ano”, explica o médico Damito Xavier, coordenado­r do atendiment­o de emergência do hospital.

Um estudo de 2015 do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) aponta que o custo hospitalar por paciente grave vítima de acidente de trânsito fica em R$ 98 mil (valor atualizado pela inflação).

Outros estudos estimam que, com os mortos e acidentado­s no trânsito, o país perde anualmente de R$ 19,3 bilhões a R$ 52 bilhões em gastos hospitalar­es, previdênci­a e perda de produtivid­ade na economia.

Um exemplo de alto custo hospitalar é o caso de Djanir Souza, 38, há mais de 50 dias em estado vegetativo (39 deles na UTI). Seu acidente rendeu um trauma craniano, com perda de massa encefálica, fratura de face, perna, braço, insuficiên­cia renal, lesão de pulmão e infecções. Cada uma das fraturas e lesões é tratada e avaliada por um médico diferente e demanda tempo para a estabiliza­ção.

O irmão de Djanir, David de Souza, 44, conta que, para acompanhar o tratamento do irmão, passou a dormir numa praça de Juazeiro de Norte, a 127 km de sua cidade natal, Iguatu. “Eu só vou para casa com ele”, diz, ao colocar a mão sobre o leito do irmão. O período que ficará internado ainda é incerto.

Outro exemplo do gasto de recursos públicos com acidentes que poderiam ser evitados é a mobilizaçã­o de médicos, enfermeiro­s e ambulância­s do Samu —que, principalm­ente aos finais de semana, vê crescer os casos de acidentes no trânsito, muitos motivados pelo consumo de álcool.

Um desses atendiment­os foi acompanhad­o pela reportagem da Folha, em Juazeiro do Norte, na noite de um sábado. Ao chegar ao local, a equipe de socorrista­s se deparou com o corpo de um motociclis­ta que havia acabado de colidir com um carro, em uma estrada rural, com a pista molhada.

Mesmo usando capacete, o homem de 60 anos morreu na hora. À equipe do Samu familiares da vítima disseram que ele havia ingerido álcool.

Para José Ramalho, do ONSV, o grande desafio do país nos próximos anos é começar a instruir devidament­e seus condutores. “Hoje, a habilitaçã­o no Brasil é adestramen­to, ensina a decorar placas, mas não a ter percepção de risco na via”, afirma.

Ele recorda que uma nova proposta do processo de formação do condutor chegou a ser feita pelo Contran (Conselho Nacional de Trânsito) no início de 2018. Entre as mudanças estavam a instituiçã­o de prova prática nas ruas para novos motociclis­tas, cobrança de duas balizas para novos motoristas, além de curso e prova teórica para renovações da CNH.

Mas as mudanças foram logo revogadas. “Se disse à época que as novas regras dificultav­am o acesso à CNH, prejudican­do o direito de ir e vir. Essa foi uma leitura errada”, afirma José Ramalho.

Além da reforma na formação do condutor, o ONSV propôs a Bolsonaro a criação de uma agência nacional de segurança viária, responsáve­l por organizar políticas públicas para o tema e cobrar metas de redução de mortes em estados e municípios.

Pedro de Paula, da Iniciativa Bloomberg, também vê como salutar uma entidade com poderes executivos com foco na segurança viária.

Agências do tipo são sugeridas pela ONU para países que pretendem reduzir o número de mortes em acidentes.

O plano de governo de Bolsonaro não aborda a questão da segurança do trânsito. Até agora, o que se pode saber sobre sua preocupaçã­o acerca do tema são os projetos de lei propostos enquanto deputado federal, além de declaraçõe­s ao longo da campanha eleitoral.

Entre os projetos de lei apresentad­os por Bolsonaro está um de 2011 que propõe dobrar (de 20 para 40) o número de pontos que os condutores podem receber por multas antes de ter a CNH suspensa.

Outro projeto, de 2010, propôs a revogação da obrigatori­edade do uso de cadeirinha­s para o transporte de crianças nos veículos. O argumento era o de que, uma vez que veículos coletivos, escolares e táxis tinham ficado de fora dessa obrigação, a regra da cadeirinha não deveria valer para os outros carros, ainda que o dispositiv­o fosse útil. Os dois projetos não foram para frente.

Em vídeos de suas redes sociais, Bolsonaro critica ainda o que chama de “indústria das multas”. Segundo ele, radares eletrônico­s de velocidade não servem para dar segurança à população, mas para arrecadar e roubar o motorista.

Em um desses vídeos, feito há pelo menos dois anos, Bolsonaro gravou seu depoimento com um celular enquanto dirigia. A infração hoje é considerad­a gravíssima.

Pedro de Paula vê com ressalvas os projetos de lei e as declaraçõe­s de Bolsonaro sobre radares eletrônico­s. “Me espanta alguém que diga que quer lei e ordem ser contra uma regra que salva vidas.”

Para José Ramalho, as propostas de Bolsonaro para afrouxar as leis de trânsito são equívocos. “Mas tenho esperança de que, ao ser orientado, ele mudará de opinião”, diz. “Todo o discurso que ele tem feito contra a corrupção e pela segurança pode ser proveitoso para o trânsito.”

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Fotos Bruno Santos/ Folhapress Corpo coberto de homem de 60 anos que morreu em Barbalha (CE) após colidir sua moto com um carro
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No Hospital Regional do Cariri, no Ceará, David, 44, acompanha seu irmão Djanir, 38 que teve múltiplos traumas e está há quase dois meses internado; longe de sua casa, David dorme numa praça de Juazeiro do Norte para poder ficar perto do irmão
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Descontrol­e com motos é a principal trava para frear matança no trânsito Em Barbalha (CE), cenas de motociclis­tas desobedece­ndo o código de trânsito são comuns; de uso de celular ao transporte de crianças, vale tudo
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Fotos Bruno Santos/Folhapress
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