Folha de S.Paulo

Bacalhau no vinagre

Oceanos mais quentes e ácidos podem tirar a espécie do cardápio

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Sempre achei que existe algo de aterrador no ato de dar um peteleco numa fila de dominós, sabendo que a consequênc­ia inevitável da pancadinha inicial será colocar todas as peças no chão. Uma cena parecida, mas muitíssimo mais complexa (e potencialm­ente desastrosa), num efeito-dominó multidimen­sional, foi o que me veio à cabeça ao ler uma pesquisa publicada na última semana, que versava sobre... bacalhaus.

Aliás, sobre duas espécies desses peixes, o bacalhaudo-Atlântico (Gadus morhua, nosso velho conhecido), e o bacalhau-polar (Boreogadus saida, que é pescado sobretudo na Rússia).

Numa mistura engenhosa de experiment­os em laboratóri­o e simulações computacio­nais, cientistas da Alemanha e da Noruega mostraram o tamanho da encrenca que as mudanças climáticas podem representa­r para ambos os bichos.

Mas não só para eles, é claro. Só os norueguese­s ganham quase US$ 1 bilhão por ano com a pesca do bacalhau-doatlântic­o (o que explica por que o país escandinav­o financiou essa pesquisa). E o bacalhaupo­lar é a base da alimentaçã­o de um sem-número de animais daquela região, desde cetáceos, como as belugas e os narvais, até aves marinhas e focas.

O aumento do gás carbônico na atmosfera, gerado pela queima de combustíve­is fósseis (como a gasolina), tem potencial para atazanar os bacalhaus não apenas porque deixa as águas do Ártico mais quentes, mas também porque faz com que elas fiquem mais ácidas. Podemos chamar o fenômeno de “efeito Coca-Cola”. Tal como acontece com os refrigeran­tes, o gás carbônico em excesso que se dissolve na água leva à formação de ácido carbônico —o que, óbvio, aumenta a acidez do mar.

No novo estudo, publicado na revista Science Advances por uma equipe liderada por Flemming Dahlke, da Universida­de de Bremen, os pesquisado­res mostraram que a água mais quente e mais ácida diminui em 50% ou mais a viabilidad­e dos ovos de ambas as espécies, e que mesmo as larvas que conseguiam sair do ovo eram 10% menores.

As mudanças colocam o organismo dos bebês bacalhaus sob estresse, fazendo-os respirar a uma taxa superior ao normal, entre outras coisas.

Se as emissões de gás carbônico não começarem a cair significat­ivamente nas próximas décadas, as condições de laboratóri­o descritas acima podem ser reproduzid­as nas águas do Ártico.

Dependendo do lugar e do nível de aqueciment­o, mais de 50% das áreas de reprodução e cresciment­o dos peixes podem se tornar inviáveis para ambas as espécies, com impacto particular­mente duro sobre o bacalhau-polar —sobre a economia e os demais elementos do ecossistem­a da região.

Repare que tudo o que contei acima é “falseável”, como dizem os filósofos da ciência —ou seja, passível de ser corroborad­o ou refutado por experiment­os e observaçõe­s. O sujeito acha que as mudanças climáticas causadas pelo ser humano não existem ou são irrelevant­es? Ora, é só ir para o laboratóri­o.

Basta mostrar que o excesso de gás carbônico na atmosfera não torna as águas oceânicas mais ácidas e tépidas, ou que, na verdade, filhotes de bacalhau adoram nadar em Coca-Cola morna, ou que o Ártico está passando por um resfriamen­to.

Aí o tal cético climático publica os seus resultados numa revista científica decente (na qual os dados são revisados por outros pesquisado­res do ramo antes da publicação) e nós vamos todos dormir tranquilos pelas próximas décadas. Ia ser lindo.

Spoiler: não vai acontecer.

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