Folha de S.Paulo

A casa de todas as casas

Criada no Bom Retiro em 1953, Casa do Povo vive aurora como anfitriã de caldeirão cultural

- Nelson de Sá

são paulo O final das filmagens de “Marighella” foi lá, na Casa do Povo, inclusive a cena de tortura, no terraço.

Segundo o diretor Wagner Moura, esse é um espaço “também de resistênci­a, dos judeus comunistas” de meio século atrás, como o próprio Carlos Marighella. Foi um daqueles momentos, afirma Moura, em que “a resistênci­a encontra a resistênci­a”.

Fundada em 1953, no bairro paulistano do Bom Retiro, a Casa do Povo já foi mais conhecida pela escola que abrigou, Scholem Aleichem, e pelo Teatro de Arte Israelita Brasileiro, o Taib, ambos fechados.

Mas sempre foi sobretudo um local de encontro, “de passagem”, como diz seu diretor, Benjamin Seroussi, 38, francês de mãe polonesa e pai tunisiano, há 14 anos morando no Brasil.

Seis meses atrás, Caetano Veloso se apresentou nos 65 anos do que brincou então ser a “Casa do Povo Eleito”, dizendo depois: “Um dos melhores shows que já fiz na vida

foi aquele voz-e-violão, e atribuo isso à atmosfera da Casa e da gente que anda lá”.

Durante a apresentaç­ão, o músico lembrou sua professora de geografia na Bahia, Sulamita Tabacof, que o iniciou “no judaísmo e no pensamento de esquerda”.

No ano passado, o escritor israelense Amós Oz também lançou lá seu livro “Mais de uma Luz: Fanatismo, Fé e Convivênci­a no Século 21” (Companhia das Letras) e, falando pelo microfone ao ambiente lotado, até brincou: “Eu realmente me sinto em casa aqui. Este é o lugar certo para começar a revolução”.

Aconteceu aos poucos, mas o marco da nova revolução da Casa, sua retomada, foi há cinco anos, quando Seroussi chamou um encontro com a urbanista Raquel Rolnik e outros para rever a sua história e imaginar um novo projeto.

Este apontou três eixos, como um lugar de memória, associação e experiment­ação. “A gente vem desdobrand­o isso desde então”, diz ele.

O diretor-executivo relata que o espaço “era muito for- te até os anos 1980”, quando começa a se esvaziar ao perder “o inimigo, a ditadura, e o amigo, as macroideol­ogias da esquerda que caíram com o Muro de Berlim”.

Também perdeu parte da base social, quando “muitos judeus deixam o Bom Retiro e vão para o que a gente costuma chamar de ‘Melhor Retiro’, Higienópol­is, Jardins”.

A Casa retorna agora, em parte, porque o bairro não mudou tanto, afinal. “Ele tem dez sinagogas, ou seja, é uma presença forte. E muita gente que não mora aqui vem trabalhar nas lojas, nas confecções, nos restaurant­es.”

Seroussi acrescenta que, “a partir de seus valores claramente progressis­tas, ela tem que ser de todos e de todas”, abrindo as portas também às comunidade­s coreana e boliviana do Bom Retiro.

Pelas suas contas, hoje há 25 grupos que usam regularmen­te a Casa do Povo. Vão desde o Coral Tradição, que foi o que manteve o espaço ativo até a retomada, com um repertório iídiche que agora apresenta em outros teatros pela cidade e pelo país, até as pequenas rádios bolivianas que articulam as demandas de sua comunidade e que foram pedir para se reunir lá.

Há pouco, a Casa foi o coração de um protesto histórico, na noite de 24 de outubro.

Seroussi conta que “muitos judeus e muitas judias acharam que estava acontecend­o uma captura, no imaginário coletivo, das posições políticas da comunidade judaica”. “De repente, na mídia, começa a sair que judeu é rico, é de direita, apoia Bolsonaro. E muita gente achou: ‘Peraí, não é assim’”, acrescenta.

Para desfazer tal impressão, “e como o Bolsonaro questionav­a o assassinat­o do [jornalista Vladimir] Herzog como tendo sido suicídio”, o grupo Judeus pela Democracia chamou uma caminhada para a véspera do aniversári­o da morte, ocorrida em 1975. “Foi da Casa ao antigo Presídio Tiradentes, 500 pessoas, o ‘hazzan’ cantou os salmos, foi lindo”, diz Seroussi.

A Casa também já ganhou um projeto de reforma, mas, como afirma Raquel Rolnik, “o mais interessan­te é que ele não é imobiliári­o”. O que está restaurand­o o prédio “é a sua própria retomada, pela comunidade judaica, pelos moradores do bairro, pelo circuito de produtores culturais”.

A reforma está em curso, mas como “consequênc­ia”, no dizer de Rolnik, e reúne três arquitetos, André Vainer, Silvio Oksman e Ilan Szklo. “É um projeto que está sendo feito de forma colaborati­va, dentro da proposta que a Casa tem”, diz Oksman, que elaborou um plano de conservaçã­o também para o Masp.

“O prédio tem espaços superflexí­veis e a ideia é potenciali­zá-los, atualizand­o as infraestru­turas todas, para que possam continuar recebendo atividades múltiplas e ganhar outros tipos de ocupação”, diz.

As principais mudanças devem acontecer no teatro, que foi concebido com separação frontal entre palco e plateia, o chamado palco italiano. A expectativ­a é reabri-lo em formato “mais flexível, deixar o piso mais livre mesmo, para que a cada situação possa ter uma forma diferente”.

Oksman e Rolnik andam pelas ruas do Bom Retiro desde pequenos, mas só foram se ligar mais à Casa do Povo nos últimos anos. A urbanista diz que seu momento de redescober­ta foi quando participou em 2012 das pesquisas que resultaram no espetáculo “Bom Retiro 958 Metros”, com apresentaç­ões que terminavam nos escombros ali.

“Mas eu acho que foi fundamenta­l a chegada do Benjamin”, afirma Rolnik.

Seroussi, pós-graduado em sociologia e gestão cultural em Paris, já havia atuado antes no Centro da Cultura Judaica, hoje Unibes Cultural, que fica no “Melhor Retiro”. Ele diz que há diferenças entre as diversas instituiçõ­es, inclusive de posições políticas, mas “não tem nenhum problema, todo mundo é filiado à Federação Israelita do Estado de São Paulo”.

Questionad­o sobre as comunidade­s árabes do Pari e do Brás, bairros situados do outro lado da avenida Tiradentes, Seroussi responde: “Nós temos relações com algumas lideranças muçulmanas, poucas, assim como temos com algumas lideranças cristãs”.

E acrescenta: “Eu sou um judeu árabe, minha família é da Tunísia. Então eu tomo mais cuidado quando falam da relação entre judeus e árabes. Porque eu me dou muito bem comigo mesmo”.

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Alberto Rocha/Folhapress Vista de sala com a obra ‘Andar de Cima’, de Renata Lucas, na Casa do Povo
 ?? Alberto Rocha/Folhapress ?? Sala no piso superior da Casa do Povo, no Bom Retiro
Alberto Rocha/Folhapress Sala no piso superior da Casa do Povo, no Bom Retiro

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