Folha de S.Paulo

Fabuladore­s e reflexivos

Há escritores que se inclinam à pura fabulação e os que aspiram à pura reflexão

- Cristovão Tezza Ficcionist­a e crítico literário, autor de ‘O Filho Eterno’ e ‘A Tirania do Amor’

Categorias literárias são metáforas instrument­ais, chaves de fenda abstratas da teoria literária, a mais fantasmagó­rica das ciências, na luta por abrir a tampa dos segredos da ficção e da poesia. O seu objeto nunca está na própria literatura ou mesmo no esqueleto da linguagem, como sonharam os formalista­s russos e toda a linhagem moderna dos estrutural­istas, que marcaram o século 20.

Temos de correr atrás da história, da sociologia, da filosofia, da publicidad­e, das artes plásticas, da psicologia, da política, da fé e da descrença, das ciências exatas, ou, como hoje, atrás das marcas identitári­as genéricas e específica­s, para chegar a algum intrigante caroço “literário”, que seguramos entre os dedos, contra o sol, para vê-lo melhor.

É preciso não desistir da tarefa impossível, entretanto. As maçãs já caíam das árvores bem antes que se formulasse a lei da gravidade. De tempos em tempos, em geral nas férias entre um romance e outro (durante a escrita me entrego a um mundo paralelo que me deixa alienado por um bom tempo, o mundo real que espere), também procuro ferramenta­s abstratas de elucidação literária.

Uma boa cerveja ajuda, conversa com amigos também, e lá estou eu criando teorias de boteco, que duram enquanto durar o estoque na geladeira. A última que me ocorreu (certamente um plágio de alguma fonte esquecida) foi separar ficcionist­as entre os fabuladore­s e os reflexivos.

O problema das afirmações científica­s peremptóri­as é que, como as mentiras, necessitam de andaimes sucessivos para continuar em pé, até criar, digamos, uma catedral lógica com encaixes de segurança.

Como todo texto literário é ao mesmo tempo trama e reflexão, meu primeiro andaime marca os limites do espectro: escritores que se inclinam para a pura fabulação e escritores que aspiram à pura reflexão. Vejamos dois antípodas: Agatha Christie e Samuel Beckett.

Por acaso tenho em mãos uma biografia da “rainha do crime” que acaba de sair (“Agatha Christie - Uma Biografia”, de Janet Morgan; ed. BestSeller. Trad. de Patricia Azeredo), que li de uma sentada. É uma biografia “autorizada”, portanto chapa-branca, o que talvez não seja exatamente um problema porque Agatha Christie (1890-1976) parece mesmo uma escritora chapa-branca.

Em tudo que escreveu, diz a biógrafa, “as tramas variavam, mas a moral era previsível: o bem devia triunfar e a ordem, ser restaurada”. Ela foi um dos maiores fenômenos literários da história; escreveu mais de uma centena de livros que fizeram um sucesso estrondoso e sem paralelo; vendeu e continua vendendo milhões e milhões de exemplares em mais de 50 línguas, e uma de suas peças de teatro, “A Ratoeira”, há décadas em cartaz, é o espetáculo mais representa­do da terra de Shakespear­e. Hercule Poirot, o excêntrico detetive belga, e Miss Marple, a simpática e atenta velhinha, suas criações, continuam rendendo adaptações sem fim para cinema e televisão.

Entretanto, diz a biógrafa, “Agatha não era nem cosmopolit­a nem intelectua­lmente sofisticad­a. Seus horizontes eram limitados e sua perspectiv­a, a de uma inglesa eduardiana de classe alta”. De extraordin­ário na sua vida, houve uma crise conjugal que levou-a ao divórcio, quando o marido confessou-se apaixonado por outra mulher. Num célebre episódio jamais explicado totalmente, Agatha desaparece­u por vários dias, num apagão de memória; ao ser reencontra­da, não reconhecia nem a filha de sete anos.

Mais tarde, casou-se novamente, agora com um grande arqueólogo, 15 anos mais novo que ela, com quem viveu banhada em felicidade até a morte. Segundo um jornal, Agatha dizia que era ótimo ser esposa de um arqueólogo —quanto mais velha ela ficasse, mais ele se interessar­ia por ela, um exemplo maravilhos­o de humor inglês. Mas, para minha decepção, descobri na biografia que ela detestava esta piada, que correu mundo.

Qual o segredo de Agatha Christie? Ora, digo eu, abrindo outra cerveja, a absurda capacidade de criar tramas, o talento absoluto do fabulador. Ninguém lê seus livros para mergulhar nos subterrâne­os da condição humana, mas para descobrir o assassino. Já Samuel Beckett, na outra ponta do espectro… bem, passo à palavra à Janet Morgan: “A fim de se manter informada sobre as tendências atuais, ela foi assistir às peças de Samuel Beckett, e as achou difíceis”.

Como queria demonstrar.

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Vânia Medeiros

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