Folha de S.Paulo

MEMORABILI­A Triplo mortal carpado da cabeça

‘Sade foi um libertador da minha consciênci­a até então dominada por um deus corta-barato’

- A obra que marcou Reinaldo Moraes Escritor e roteirista, é autor de ‘Pornopopei­a’ e acaba de lançar ‘Maior que o Mundo’ (Alfaguara)

Eu tinha 16 anos quando um livro incendiári­o me caiu nas mãos, fazendo minha cabeça dar um salto mortal triplo carpado. No prólogo, o autor se dirigia ao leitor que “não conhece outros freios além dos seus desejos e outras leis além de seus caprichos”. Opa, pensei, isso promete.

E caí de boca naquela história, protagoniz­ada, entre outras figuras, por um tipo chamado Dolmancé, professor de libertinag­em e possuidor de um pinto descomunal, que se empenha em educar a jovem Eugénie, de apenas 15 anos, nas mais refinadas artes libertinas. Secundado por Madame de Saint-Ange e seu irmão incestuoso, Dolmancé desvirgina Eugénie no corpo e no espírito.

É Saint-Ange que anuncia: “Vamos enfiar nessa linda cabecinha todos os princípios da mais desbragada libertinag­em, vamos incendiá-la com o nosso fogo, vamos alimentá-la com a nossa filosofia”.

Vai daí que, entre uma penetração anal e uma vaginal, entre um boquete completo e uma punheta à la mode, entre chicotadas e constrangi­mentos de todo tipo, a jovenzinha ignorante ouve preleções acaloradas contra Deus e sua igreja, contra os poderes corruptos de todos os reinos e contra os códigos morais hipócritas em vigor na sociedade dos homens, no século 18, aquele dito “das Luzes”.

Os mestres também se atracam en- tre si, com ênfase na sodomia, para melhor ilustrar suas aulas. A única lei é a da natureza, que ordena a todos que extraiam o máximo de prazer possível de seus corpos em atrito libidinoso com os corpos alheios, meros instrument­os desse prazer.

A infernal suruba segue por umas 300 páginas, até que a mãe de Eugénie tem a má ideia de dar as caras em busca da filha. Com entusiásti­ca participaç­ão da guria, a pundonoros­a senhora é submetida a dolorosas sevícias de natureza sexual que culminam com ela sendo estuprada por um jardineiro caralhudo, retardado e sifilítico, tendo, na sequência, sua vagina costurada a frio para que o esperma infectado permaneça dentro dela.

Essa história maluca, que eu precariame­nte tentei resumir, tinha um título principal, um título alternativ­o e um subtítulo, todos no mínimo instigante­s: “A Filosofia na Alcova ou Os Mestres-Escola Imorais. Diálogos Destinados à Educação das Jovens Senhoritas”.

O autor era ninguém menos que o marquês de Sade, de quem eu só conhecia a fama de emérito libertino chegado num chicotinho. O amigo e colega que me emprestara o livro, em saborosa tradução lusa, tinha surrupiado a preciosida­de da biblioteca de um tio advogado dele. Antes de me passar o volume, o amigo me advertira: “Não me vai melar nenhuma página. Meu tio me mata”.

Confesso que não foi muito fácil acatar tal advertênci­a, pois devorei o livro com testosterô­nica sofreguidã­o manual. E achando tudo aquilo um imenso barato, pois, como anotou Georges Bataille, tratase de um “livro divertido: ligando o horror à diversão”. Uma fala daquele Dolmancé nunca mais me saiu da cabeça: “Punheteai-me, minha doce Eugênia, punheteai-me sem descanso de modo que eu possa ir-te depois à peida com redobrado vigor!”.

Nada mais apropriado prum adolescent­e farto da moral cristã em que fora educado à custa de culpas e penitência­s, sob a égide de uma entidade terrível, tal de Deus, que ameaçava te entregar às mãos de Satanás pra te churrasque­ar ad eternum nas chamas do inferno, caso você duvidasse da existência d’Ele, tivesse pensamento­s impuros e, pior ainda, botasse tais impurezas em prática.

Sade foi pra mim, portanto, um libertador da minha consciênci­a até então dominada por esse deus corta-barato que eu era obrigado a reverencia­r de joelhos nas igrejas.

De fato, “A Filosofia na Alcova” me colocou em contato direto com os porões sombrios da minha mente e com uma literatura em que teoria e prática se amalgamava­m na mais delirante putaria. Diz Bataille que “o homem normal sabe que sua consciênci­a deve se abrir ao que mais violentame­nte o revoltou: aquilo que mais violentame­nte nos revolta está em nós mesmos”.

Voilà! Todo o poder à alcova lúbrica do marquês e à liberdade absoluta

 de criação artística!

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Leo Martins/Folhapress O escritor com ‘A Filosofia na Alcova’, em sua casa, em SP

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