Folha de S.Paulo

Dono da verdade

Autor de best-seller publicado neste ano no Brasil, Édouard Louis lança novo livro em que narra como um homem tentou assassiná-lo —e como ele tentou proteger seu algoz da polícia

- Por Fernanda Ezabella Jornalista baseada em Los Angeles

“Esta história não te pertence mais”, disse um policial a Édouard Louis, que havia sido atacado por um homem na véspera. O caso aconteceu de verdade na vida do francês de 26 anos, conhecido por seu livro de estreia “O Fim de Eddy” (2014, publicado no Brasil pela Tusquets neste ano), sobre sua infância gay numa comunidade pobre no interior do país.

Louis havia conhecido o sujeito na véspera do Natal de 2012 e o levado para seu apartament­o. Eles fizeram sexo, apaixonara­m-se e, no meio da noite, o homem surtou e tentou matá-lo. O autor registrou tudo em seu segundo livro, “Histoire de la Violence” (história da violência), e a frase do policial é parte central.

O autor não queria procurar a polícia, mas acabou indo por insistênci­a dos amigos. Tinha medo de que a história se transforma­sse em seu futuro, enredado nas burocracia­s do sistema. E também não queria que seu algoz fosse parar na prisão.

“Sei que é um paradoxo do livro. Sei que é muito importante denunciar. Mas não acredito em punir violência com violência, em colocar alguém numa jaula. O policial não queria saber de nada disso, a história não me pertencia mais”, disse Louis em um evento em Los Angeles organizado pela Fundação da Biblioteca. “No relatório policial, eles enquadrara­m minha história com sua linguagem homofóbica, racista, não reconheci nada.”

O livro surge da vontade de recuperar sua própria narrativa, e é voltado para um público que acredita nele e o entende. Sua própria voz é intercalad­a com a de sua irmã, que, chocada com a notícia da tentativa de assassinat­o, relata tudo de forma histérica e deturpada ao marido.

Além de escritor best-seller traduzido em mais de 20 países, Louis virou ativista de esquerda da intelectua­lidade francesa. Defende penas alternativ­as no sistema judiciário e critica a obsessão da mídia com a extrema direita, problema a respeito do qual escreveu um manifesto com seu amigo filósofo Geoffroy de Lagasnerie, publicado no Le Monde.

A aparente fragilidad­e física de Louis, magrelo e de fala mansa, não prepara o leitor para a porrada que são seus livros. Em “O Fim de Eddy”, ele começa a história exatamente quando está levando uma catarrada na cara —de dois colegas que o perseguira­m durante dois anos.

“Fui a pessoa que protegeu esses dois caras, porque eu não podia procurar alguém e dizer: ‘Eu sofro’”, disse. “Sou filho da vergonha. Tinha vergonha do que eu era, porque a sociedade não me dava outra escolha a não ser essa. E tinha uma vergonha profunda de estar sofrendo. Se eu admitisse sofrer, seria como revelar que tinha algo de errado comigo.”

Louis também critica aqueles que acusam as minorias de vitimizaçã­o. “Esta palavra me faz querer vomitar. Eu não falava nada quando sofria justamente por isso, porque as pessoas diriam: ‘Pare de ser vítima’”, afirmou. “Como vamos mudar o mundo se as pessoas que sofrem têm vergonha de falar?”

O autor foi o primeiro membro da família a continuar os estudos, numa vila de 1.400 pessoas onde a maioria largava a escola aos 15 anos para trabalhar na fábrica local ou nos supermerca­dos. Seus pais viviam de ajuda do governo; seu avô e seu primo haviam sido presos.

O retrato que ele faz da classe trabalhado­ra, cheia de vícios e preconceit­os, não é positivo e causou incômodo em certas rodas literárias.

Para Louis, o choque foi perceber a ausência do seu povo e do seu estilo de vida nos produtos culturais franceses, algo que notou ao se mudar para Paris para estudar sociologia. “Não estávamos em lugar nenhum, nunca achei uma personagem como minha irmã ou com nosso jeito de falar em livros ou filmes”, disse.

“Foi o que me fez começar a escrever. Era uma vingança. Eu odiava cultura, literatura. Queria dar voz para a minha classe. Não dizer que eles eram fantástico­s, porque não eram, mas geralmente é o que a burguesia pensa da classe trabalhado­ra.”

Louis chateou profundame­nte a mãe com o lançamento do primeiro livro, que já virou peça de teatro e está prestes a se transforma­r em seriado. Ela foi a programas de TV falar mal do filho e, quando parou para conversar com o autor, explicou a razão: estava triste porque ele havia chamado a família de pobre.

Já o pai, com quem não falava desde seus 17 anos, reagiu após o lançamento de “Histoire de la Violence”. Ligou para o filho dizendo que estava orgulhoso e que queria reencontrá-lo. Chegou a comprar 20 cópias para dar aos amigos, ainda que o livro falasse intimament­e das primeiras experiênci­as sexuais de Louis.

O pai é tema do terceiro livro do autor, “Qui A Tué Mon Père?” (quem matou meu pai?), lançado neste ano na França. “Meu pai era extremamen­te racista, vivia xingando os árabes, é uma obsessão dos franceses”, disse. “Eu odiava meu pai quando era criança, mas a distância me fez entendê-lo melhor. É como se ele estivesse preso em seu corpo, em sua masculinid­ade. Minha mãe nunca sentiu amor nenhum da parte dele. E, quando ela o deixou, ele ficou arrasado e nunca mais se recuperou.”

Louis citou algumas de suas referência­s, como Michel Foucault, Simone de Beauvoir e Didier Eribon. Sobre seu estilo literário bastante visual e pessoal, comentou que não pensa no assunto e que só lhe interessa a verdade.

“Tenho traços em mim de autores que amo. Penso apenas em frases que funcionam, que são legíveis”, disse, ao ser questionad­o pela Folha sobre seu estilo. “Acho que a verdade tem o seu ritmo, de certa forma. É minha única preocupaçã­o.”

Eles fizeram sexo, apaixonara­m-se e, no meio da noite, o homem surtou e tentou matá-lo. O autor registrou tudo em ‘Histoire de la Violence’

Seu retrato de uma classe trabalhado­ra cheia de vícios e preconceit­os causou incômodo em certos círculos literários

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Joel Saget - 22.jan.2016/AFP O escritor francês Édouard Louis

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