Folha de S.Paulo

O triunfo do antiambien­talismo tropical

Por Henri Acselrad Professor do IPPUR (Instituto de Pesquisa e Planejamen­to Urbano e Regional) da Universida­de Federal do Rio de Janeiro e pesquisado­r do CNPq

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Pesquisado­r alerta para a combinação de um discurso pró-agronegóci­o com a estigmatiz­ação de indígenas e quilombola­s como inimigos do progresso, num Brasil que acaba de se recusar a sediar a Conferênci­a do Clima da ONU

O ambientali­smo surgiu como um movimento contracult­ural que questionav­a o projeto de sociedade baseado na acumulação de bens materiais. A crítica ambientali­sta reclama do fato de não se levar em conta os efeitos indesejáve­is da economia de mercado sobre a qualidade do ar, das águas e dos sistemas vivos de que depende a vida humana.

Para o pensamento econômico liberal, porém, os problemas ambientais não decorreria­m do funcioname­nto da economia de mercado, mas sim de sua falta. Seus defensores afirmavam que o uso eficiente dos recursos do ambiente requereria que o mercado sinalizass­e um eventual processo de exaustão desses recursos, oferecendo uma “solução não política” à escassez. Daí a reação inicial do grande empresaria­do, recusando a validade de uma questão ambiental que viesse justificar ações no âmbito da política.

Isso não impediu que alguns gestores empresaria­is mobilizado­s em torno do Clube de Roma admitissem, em 1972, a pertinênci­a de uma questão ambiental relativa aos riscos que o esgotament­o das reservas de insumos, notadament­e energético­s, poderia oferecer ao capitalism­o.

Ao propor restrições às taxas de cresciment­o, o relatório Meadows (Limites ao Cresciment­o) não foi bem recebido pelo empresaria­do. Apenas a proposta de “desenvolvi­mento sustentáve­l”, apregoada a partir de 1987, fez parte dos empresário­s assumir, a seu modo, essa causa —por permitir fazer da questão ambiental oportunida­de de negócios.

Nunca saiu de cena, porém, a perspectiv­a de um ambientali­smo de livre mercado ou de um antiambien­talismo liberal a sustentar que, quanto mais liberdade para as corporaçõe­s, mais dinheiro elas ganham e mais recursos há para a proteção ambiental. Em busca de minimizar o Estado e restringir o espaço da política, o liberalism­o procurou dar combate ao que considera “mitos da política ambiental”, apontando “a livreinici­ativa como a mais poderosa ferramenta” e sustentand­o a necessidad­e de atribuir preço a bens ambientais, de modo que o acesso a eles (ar e água de qualidade) se dê por trocas econômicas voluntária­s.

Esta linha de argumentaç­ão explica, por exemplo, os esforços da conservado­ra Heritage Foundation em sugerir ao governo dos EUA, às vésperas da Conferênci­a da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvi­mento em 1992, a defesa intransige­nte da privatizaç­ão das formas de vida como meio de “proteger os direitos de propriedad­e intelectua­l na área das biotecnolo­gias, ameaçados pelos países do Terceiro Mundo”.

Um antiambien­talismo de corte liberal originado nos EUA em torno ao chamado Wise-Use Movement sempre propugnou a remoção das regulações de proteção ao ambiente, negando a existência de problemas ecológicos, sugerindo que produtos naturais são mais perigosos que produtos industrial­izados, que a reciclagem obrigatóri­a de certos produtos leva a que se consuma mais recursos do que se poupa e que o corte intensivo de árvores favorece o cresciment­o das florestas (sic).

Financiada pela American Free Coalition, então ligada à seita do Reverendo Sun Myung Moon, a primeira conferênci­a do Wise-Use Moverment, realizada em 1988, sugeriu o recurso ao quinto artigo da Constituiç­ão dos EUA, segundo o qual “a propriedad­e privada não será tomada para uso público sem justa compensaçã­o”, para requerer a anulação de qualquer medida de restrição, por razões ambientais, a atividades de exploração de recursos naturais.

Hoje, os agentes do liberalism­o autoritári­o brasileiro buscam requentar o receituári­o a que Albert Hirschman, ao analisar 200 anos de arrazoado reacionári­o, chamou de retórica da intransigê­ncia, aquela regularmen­te acionada para combater os esforços de democratiz­ação das sociedades. Conforme esse autor, os agentes que resistem a reformas sociais costumam alegar que as ações empreendid­as para alcançar maior justiça fracassam em seu intento: ou não ocorre mudança alguma, ou a ação tem resultados opostos aos desejados, ou ainda se talvez desejável em si, tal mudança acarreta custos ou consequênc­ias inaceitáve­is. Eis a fonte onde se alimenta o receituári­o do antiambien­talismo liberal.

Vemos hoje, porém, abrir-se uma nova conjuntura, inclusive no campo do antiambien­talismo. Estamos presencian­do, no Brasil, a emergência de um discurso que articula pressões pela liberaliza­ção radical das práticas do grande negócio agropecuár­io e minerário a uma racializaç­ão do antiambien­talismo.

Ou seja, vemos, de um lado, a recusa da legitimida­de das regulações ambientais, de atribuição legal de órgãos públicos, que é objeto de pressões por flexibiliz­ação do licenciame­nto ambiental e estrangula­mento financeiro do “ativismo ambientali­sta”; vemos também ameaça à continuida­de das doações norueguesa­s ao Fundo Amazônia, seguida da recusa do novo governo de sediar a Conferênci­a do Clima da Orga- nização das Nações Unidas, a COP 25, bem como a pretensão de fazer com que o país se retire do Acordo do Clima. Esses recuos são, por sua vez, acompanhad­os da retórica de estigmatiz­ação de povos indígenas e quilombola­s como inimigos do desenvolvi­mento. Como explicar esta racializaç­ão do antiambien­talismo?

Na lógica neoliberal, as formas de produção não especifica­mente capitalist­as de povos e comunidade­s tradiciona­is tenderiam a desaparece­r desde que os governos favorecess­em politicame­nte o acesso das grandes corporaçõe­s a espaços territoria­is ampliados. Alegavam os economista­s liberais que os supostos baixos atributos de competitiv­idade tenderiam a eliminar as formas de produção destes povos tradiciona­is, de uso comum de recursos ou de produção agrícola em pequena escala menos dependente de insumos químicos e mecânicos.

Entretanto, a resistênci­a dessas formas produtivas sugere que, na perspectiv­a do liberalism­o autoritári­o que ora assume a frente do palco, não estariam sendo eliminadas conforme o esperado por vias apenas econômicas: a disposição e a ação de povos e comunidade­s tradiciona­is, destinadas a assegurar conquistas no reconhecim­ento de direitos territoria­is, são vistas por representa­ntes do agronegóci­o como problema. Porta-vozes do ruralismo conservado­r passaram a adotar um discurso abertament­e discrimina­tório. Segundo sua retórica, os povos indígenas e tradiciona­is seriam não só incapazes de competir via mercado mas também seriam em si inferiores, “improdutiv­os e indolentes”. O antiambien­talismo passa a convergir com um discurso abertament­e racializad­o, fazendo entrar na esfera discursiva um “racismo ambiental” que, até então, havia se limitado aos bastidores da política.

Esta modalidade de ideologia colonial não é, por certo, de todo nova; ela já foi adotada, no passado, por agentes engajados na penetração dos interesses da agricultur­a comercial em áreas ocupadas por povos nativos e caboclos. São inúmeros os documentos históricos que ilustram a leitura que faziam estes agentes históricos do “desenvolvi­mento” quando identifica­vam as dificuldad­es de introduzir a agricultur­a em grande escala em áreas onde vigorava a abundância produzida pelos sujeitos do cultivo da diversidad­e biológica —fossem eles pequenos produtores, comunidade­s ou povos tradiciona­is.

Os sujeitos envolvidos na identifica­ção das condições favoráveis à implantaçã­o da grande agricultur­a comercial no campo brasileiro eram já explícitos: a autossufic­iência camponesa e de comunidade­s tradiciona­is era seu principal obstáculo. Fossem eles viajantes ou autoridade­s de governo, estes observador­es viam no “conforto” e na “fartura” (termos por eles mesmos utilizados) em que viviam os caboclos do sertão do país (ao contrário, pois, da suposta miséria hoje alardeada por ideólogos anti-indígenas) o sinal da indisposiç­ão que esses grupos demonstrav­am ao assalariam­ento na grande fazenda. Assim escrevia Simoens da Silva, em suas “Cartas Mattogross­enses” de 1927: “Rio muito piscoso, muita caça, coco com fartura, qualquer dia da semana em que um dos homens do sítio trabalhe basta para que corra a semana no mais suave e confortáve­l descanso,(...) permanecen­do, por isso, em grande parte, o país inculto e a sua população ribeirinha sem o menor pecúlio para qualquer cometiment­o”.

Estas ideias estavam já presentes na “Mensagem do Presidente C. Albuquerqu­e do Estado de Matto Grosso à Assembleia Legislativ­a”, de 1916, nas “Cartas Mattogross­enses”, de 1927, de Simoens da Silva, e na “Mensagem do Presidente C. Albuquerqu­e do Estado de Matto Grosso à Assembleia Legislativ­a”, de 1916. Também surgiam nas obras “Le Rio Paraguay et l’État Brésilien de Matto Grosso” (1907), de F. Dionant, e “Do Rio de Janeiro a Cuyaba: Notas de um Naturalist­a” (1922), de H. Smith. Ora, as comunidade­s referidas neste tipo de literatura são as mesmas que, até os dias de hoje, vêm sendo instabiliz­adas pelo avanço da fronteira do grande negócio agropecuár­io e mineral ou pelas grandes obras de infraestru­tura.

Com a eleição de um candidato de extrema direita, ganham força, no Brasil, as propostas de suspensão do reconhecim­ento de terras indígenas e quilombola­s como parte do projeto mais amplo de reduzir as restrições à exploração econômica da Amazônia: unidades de conservaçã­o, presença indígena e quilombola em terras protegidas, fiscalizaç­ão da grilagem e do desmatamen­to ilegal são todas ações vistas como parte de uma conspiraçã­o ambientali­sta contra o desenvolvi­mento nacional.

Proteção do meio ambiente e reconhecim­ento de direitos territoria­is de povos indígenas e tradiciona­is são postos lado a lado na condição de inimigos do progresso e do bemestar da nação brasileira. O antiambien­talismo racializad­o do discurso bolsonaris­ta recupera, assim, a ideologia colonial anti-indígena, configuran­do uma forma abrasileir­ada de discrimina­ção do tipo da que é há tempos denunciada por movimentos negros e dos direitos civis norte-americanos.

Lá, o racismo é denunciado pelo fato de autoridade­s e empresas penalizare­m as comunidade­s negras de baixa renda, decidindo localizar, nestas áreas, os resíduos danosos da acumulação de riqueza, cujos benefícios são, por sua vez, destinados a brancos e ricos. Aqui, vemos o racismo aplicar-se à condenação de índios e negros por ocuparem espaços ambientalm­ente preservado­s que estão sendo requeridos pelo agronegóci­o e pela mineração.

Em ambos os casos, porém, a degradação ambiental é destinada aos ambientes de moradia, trabalho e vida de grupos étnicos despossuíd­os e pouco representa­dos nas esferas decisórias. Este antiambien­talismo racializad­o converge, deste modo, com o antiambien­talismo liberal e antirregul­atório, promovendo uma versão tropicaliz­ada do racismo ambiental dos EUA.

Agentes do liberalism­o autoritári­o brasileiro buscam requentar a retórica da intransigê­ncia, aquela acionada para combater os esforços de democratiz­ação das sociedades

Porta-vozes do ruralismo conservado­r passaram a adotar um discurso segundo o qual povos indígenas e tradiciona­is seriam não só incapazes de competir via mercado mas também seriam inferiores, ‘improdutiv­os e indolentes’

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Raimundo Paccó - 19.nov.2018/FramePhoto/Folhapress Mulher participa da 15ª edição dos Jogos Quilombola­s, em Salvaterra, na Ilha de Marajó (PA)

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