Folha de S.Paulo

Medicina da família tem 70% das vagas sem interessad­os

Em cinco anos, oferta de postos para residência médica na área cresceu 260%; remuneraçã­o e carreira são entraves

- Natália Cancian

Aposta do programa Mais Médicos para atrair profission­ais para as unidades de saúde, a residência em medicina da família tem atualmente quase 70% das vagas disponívei­s ociosas.

Em cinco anos, o número de postos para a especialid­ade, cuja principal função é prestar cuidados básicos de saúde e prevenir doenças em comunidade­s, cresceu mais de 260%.

Apesar da ampliação, de 991 para 3.587 vagas, dados do Ministério da Educação revelam que a adesão a esse modelo ainda é baixa. Neste ano, só 33% foram preenchida­s.

Para especialis­tas, o problema ocorre devido à baixa remuneraçã­o e à pouca atrativida­de da carreira.

Hoje, o país tem 6.000 especialis­tas em medicina da família, menos de 2% do total de médicos.

Diante da falta de equipes nessa área, o Mais Médicos trouxe profission­ais cubanos para atenuar o déficit, principalm­ente no interior do país.

Em novembro, Cuba anunciou a saída do programa por divergir das condições impostas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), como revalidaçã­o do diploma e mudança na remuneraçã­o —os profission­ais recebem só um quarto do salário.

Aposta do programa Mais Médicos, atenção básica à saúde tem baixa atrativida­de

Aposta do Mais Médicos para atrair profission­ais para as unidades de saúde, programas de residência em medicina da família e comunidade têm atualmente quase 70% das vagas ociosas.

Nos últimos cinco anos, o número de vagas para a especialid­ade cuja principal função é prestar cuidados de saúde e prevenir doenças de uma comunidade cresceu mais de 260% —de 991 para 3.587.

Apesar da ampliação, dados do Ministério da Educação obtidos pela Folha mostram que a adesão a esse modelo ainda é baixa. Neste ano, de 3.587 vagas autorizada­s para ingresso na residência em medicina da família, só 1.183 foram preenchida­s —33%.

Para especialis­tas, o problema ocorre devido à baixa remuneraçã­o desses profission­ais e à pouca atrativida­de da carreira na atenção básica.

Diante da falta de equipes nessa área, o Mais Médicos fez parceria para ter profission­ais cubanos nos últimos anos. No mês passado, Cuba anunciou a saída do programa, por divergir das condições impostas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), como revalidaçã­o do diploma e mudanças na remuneraçã­o —Havana só repassa cerca de um quarto aos profission­ais.

Diogo Sampaio, que representa a AMB (Associação Médica Brasileira) na Comissão Nacional de Residência Médica, ressalta que “não é preciso ser médico da família para poder atender na unidade de saúde”. “Por isso há uma ociosidade muito alta”, afirma.

Em alguns casos, a baixa adesão, somada à falta de preceptore­s, nome dado aos médicos designados para orientar os residentes, já faz com que parte das vagas disponívei­s nem sejam ofertadas.

Inicialmen­te, o objetivo do Mais Médicos era ampliar as vagas nesta especialid­ade como estratégia para aumentar equipes dispostas a atuar nas unidades básicas de saúde.

Hoje, o país tem 6.000 especialis­tas em medicina da família e comunidade, menos de 2% do total de médicos.

Para facilitar a adesão, a lei que criou o programa chegou a prever que a residência em medicina da família se tornasse pré-requisito para a formação na maioria das outras especialid­ades em 2019.

A condição para que a medida entrasse em vigor, porém, era que o número de vagas em um grupo de dez residência­s específica­s fosse equivalent­e ao de egressos de cursos de medicina, o que não ocorreu.

Em 2017, o país teve cerca de 17 mil egressos de medicina. Para comparação, o número de vagas dessas residência­s soma atualmente 4.034.

Com isso, membros do Ministério da Educação ouvidos pela Folha já ressaltam que a medida não será cumprida.

Dois fatores colaboram para isso. Um deles é o impasse em atingir a meta prevista no Mais Médicos, considerad­a pouco factível no governo. Outro seria o risco de um “apagão” no atendiment­o de algumas especialid­ades.

“Hoje, muitos hospitais dependem do residente para funcionar. Se fizesse essa transição de forma brusca, seria inviável”, afirma Daniel Knupp, presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família).

Para a SBMFC, a crise no Mais Médicos gerada pela saída de cubanos pode ser uma oportunida­de para uma reformulaç­ão nas regras de oferta desse tipo de residência.

A entidade sugere que o incentivo dado aos cubanos seja repassado para vagas de residência em medicina da família. Com isso, em vez dos R$ 3.300 de bolsa da residência, os profission­ais receberiam R$ 11,8 mil, valor pago a profission­ais do Mais Médicos.

O modelo é semelhante ao adotado no Rio, onde residentes em medicina da família recebem uma complement­ação da prefeitura ao valor da bolsa de residência —o que faz com que chegue a R$ 10 mil.

Lá, a medida, somada ao bônus de 20% no salário para formados na especialid­ade, colaborou para a adesão ao programa. No início, eram 60 vagas. Hoje, são 150. Já a taxa de ocupação variou nos últimosano­sde75%a100%.

Para o superinten­dente de atenção primária do Rio, Leonardo Graever, a residência na especialid­ade é a melhor solução para aumentar o número de médicos dispostos a atuar nas unidades de saúde.

“Em dois anos, tem-se um profission­al de qualidade e apto a lidar com os problemas mais comuns da população. Não adianta o município oferecer residência em neurocirur­gia se a maior demanda é outra”, diz.

Mesmo que seja possível ampliar a adesão à medicina da família, mudanças no mercado de atuação desses profission­ais trazem dúvidas sobre a permanênci­a deles no SUS.

Planos de saúde têm aumentado a oferta de acompanham­ento por médicos da família. O objetivo é prevenir doenças, reduzir internaçõe­s e, com isso, cortar custos.

Ao mesmo tempo em que representa um aumento na possibilid­ade de atuação desses profission­ais, a medida pode trazer dificuldad­e para que a rede pública mantenha essas equipes. Isso porque, em alguns lugares, salários ofertados chegam a R$ 25 mil.

“O que garante que os especialis­tas formados nessas novas vagas vão permanecer nos locais onde não têm médicos e no SUS?”, questiona Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP. “Já perdemos alguns bons profission­ais para planos de saúde”, relata Graever, do Rio.

Para Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, o ideal seria aumentar o estímulo à busca por vagas de medicina da família na graduação e investir em plano de carreira para fixar esses profission­ais no SUS.

Sampaio, da AMB, concorda. “Se tivéssemos uma carreira de estado, a ociosidade nas vagas ia ser zero”, diz.

 ?? Robson Ventura/Folhapress ?? O presidente eleito, Jair Bolsonaro, levanta a taça do Campeonato Brasileiro dada ao Palmeiras, que venceu o Vitória no Allianz Parque
Robson Ventura/Folhapress O presidente eleito, Jair Bolsonaro, levanta a taça do Campeonato Brasileiro dada ao Palmeiras, que venceu o Vitória no Allianz Parque
 ?? Adriano Vizoni - 27.nov.18/Folhapress ?? Unidade básica de saúde em Sítio do Quinto, no interior da Bahia, que ficou sem médicos após a saída de cubanos do Mais Médicos
Adriano Vizoni - 27.nov.18/Folhapress Unidade básica de saúde em Sítio do Quinto, no interior da Bahia, que ficou sem médicos após a saída de cubanos do Mais Médicos

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