Folha de S.Paulo

Escalada em protestos deixa recordes, e Paris, vandalizad­a

Centro de Paris foi vandalizad­o, e 263 ficaram feridos em nova onda de protestos

- Lucas Neves Kamil Zihnioglu/Associated Press

Um tipo insólito de turismo dividiu espaço neste domingo (2), na região do Arco do Triunfo, em Paris, com a multidão que, faça sol, faça chuva, espreme-se na avenida Champs-Elysées para tirar selfies com o monumento.

Nas largas avenidas que se irradiam a partir da construção monumental, parisiense­s e estrangeir­os erguiam celulares e câmeras para fotografar paredes pichadas, vitrines vandalizad­as e carros queimados e revirados.

A paisagem pouco fotogênica era o resultado da ação, na véspera, de um segmento minoritári­o de “coletes amarelos”, os manifestan­tes que, vestindo o acessório obrigatóri­o em veículos que circulam na França, tomam ruas e estradas do país há três sábados para pedir a revogação do reajuste de uma taxa sobre o combustíve­l —mas não só.

Neste domingo, de volta da reunião do G20 na Argentina, o presidente Emmanuel Macron pediu ao premiê, Édouard Philippe, que recebesse líderes dos “coletes amarelos” e da oposição, o que deve ocorrer nesta segunda (3). Nas redes sociais, já há convocaçõe­s para um “quarto ato” de protestos, no sábado (8).

Na terceira jornada de mobilizaçã­o, segundo números atualizado­s no domingo pelo Ministério do Interior, protestara­m 136 mil pessoas, um pouco menos do que as 166 mil de uma semana antes. Mas a quantidade de feridos aumentou exponencia­lmente: foram 263 desta vez, contra 16 no dia 24.

Além disso, uma pessoa morreu em Arles (sudeste), em um engavetame­nto causado por um bloqueio de rodovia pelos “coletes amarelos” —foi a terceira morte acidental nas franjas do movimento.

Só em Paris, no dia 1º, a polícia deteve 412 pessoas (um recorde, segundo a corporação), das quais 378 seguiam presas na noite do domingo. Houve, além disso, 249 focos de incêndio, ao menos 130 envolvendo mobiliário urbano.

No “day after”, enquanto o arco, ainda fechado ao público após ser invadido e saqueado, era limpo de inscrições como “os ‘coletes amarelos’ irão triunfar” e “cabeças já foram cortadas por menos do que isso” (aceno à sorte da realeza na Revolução Francesa), o rastro de destruição no entorno seguia bastante visível.

Na avenida Kléber, peque- nos grupos mascarados e munidos de paus e pedras destruíram agências bancárias, retorceram e derrubaram imensas grades de ferro e tombaram semáforos.

Na fachada de um dos hotéis cinco estrelas daquela área, picharam frases como “não é uma revolução, é uma insurreiçã­o” e “temos razão de nos revoltar”.

“As pessoas protestam porque desejam pagar menos impostos. Não percebem, entretanto, que essa degradação vai se refletir justamente no bolso delas”, disse, entre uma foto e outra, a conselheir­a tributária Anne Blanckaert, 39.

Um quarteirão adiante, dezenas testemunha­m o reboque de uma caminhonet­e incinerada. “Foi chocante ontem aqui”, dizia o economista italiano Filippo Gori, 38, que mora na região há três anos. “Havia um vácuo de autoridade, a cidade parecia entregue a saqueadore­s, abandonada. Algo vai ter de mudar. O governo não pode ignorar o que está acontecend­o.”

No caminho de volta para o Arco do Triunfo, a reportagem cruza com dois homens que não se conhecem, mas que, diante de um prédio pichado com inscrições como “Babilônia arde”, “autodefesa popular” e “Paris nos pertence”, trocam impressões sobre os acontecime­ntos recentes.

“Não me surpreendo. Vejo ao meu redor milionário­s arrogantes e, ao mesmo tempo, uma precarieda­de crescente”, diz o educador Etienne, 48, que prefere não informar seu sobrenome. “Mas chama minha atenção a desconfian­ça dos manifestan­tes em relação a intermediá­rios, sejam sindicatos, sejam partidos políticos. Deploro a explosão de violência, mas consigo entendê-la.”

O funcionári­o público Said, 41, que também não dá seu nome de família, evoca uma “violência política, social, de gerações, cristaliza­da no desemprego, na pobreza, nas alocações sociais”.

“Gostaria que perguntass­em aos políticos sobre esse tipo de violência. E que a transição energética [para fontes menos ou não poluentes, que o governo quer financiar com a taxa sobre combustíve­is] fosse bancada por grandes corporaçõe­s, não por pessoas que dependem de seus carros”, afirma.

Nas avenidas vizinhas, além de vitrines destruídas, duas das imagens mais recorrente­s são as frases “queremos um presidente dos pobres” e “basta de pilhar o povo” sobre paredes e fachadas.

A suposta desconexão de Macron com as classes populares é um dos motores dos protestos, em que, por diferentes canais —aumento do salário mínimo ou diminuição dos impostos sobre aposentado­rias—, pede-se a recomposiç­ão do poder aquisitivo.

Nesse sentido, o fato de uma das primeiras medidas do presidente ao assumir, em 2017, ter sido a revogação do imposto sobre fortunas certamente não serviu para atenuar a contraried­ade de segmentos da sociedade francesa.

As pessoas protestam porque desejam pagar menos impostos. Não percebem, entretanto, que essa degradação vai se refletir justamente no bolso delas Anne Blanckaert, 39 conselheir­a tributária

Foi chocante ontem [sábado] aqui. Havia um vácuo de autoridade, a cidade parecia entregue a saqueadore­s, abandonada. Algo vai ter de mudar. O governo não pode ignorar o que está acontecend­o

Filippo Gori, 38 economista

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Ciclista passa em rua de Paris neste domingo ao lado de carros queimados em protesto no sábado

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