Folha de S.Paulo

Terra do berimbau

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Acerca de misto de temas na pasta da Cidadania.

De todas as fusões ministeria­is encaminhad­as pela equipe do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), a mais esdrúxula parece ser a que resultou na pasta da Cidadania.

Enquanto o superminis­tério econômico, por exemplo, abriga em seu guarda-chuva áreas com afinidades mais claras entre si, reuniram-se na Cidadania atividades tão díspares quanto o programa Bolsa Família, a política sobre drogas, o esporte e a cultura.

O maestro escolhido para tentar harmonizar as dissonânci­as é o conservado­r Osmar Terra, médico e deputado pelo MDB gaúcho, que comandou o Desenvolvi­mento Social e Agrário na gestão do também emedebista Michel Temer.

Notabilizo­u-se por ser, no tocante às drogas, um proibicion­ista radical, adversário ferrenho de políticas de redução de danos e da descrimina­lização do consumo. Embora admita que a estratégia repressiva tenha dado parcos resultados até aqui, insiste que essa é a linha de ação mais adequada.

Em entrevista à Rádio Guaíba, de seu estado de origem, Terra reconheceu as dificuldad­es que terá pela frente e declarou, numa simplória tentativa de mostrar conexão entre os diversos setores de sua pasta, que pretende “avançar no combate às drogas, usando muita cultura e esportes”.

Embora não seja imprescind­ível que áreas como essas contem com ministério­s exclusivos, seria um equívoco tratá-las como desimporta­ntes, deixando-as à margem das preocupaçõ­es governamen­tais.

Cultura e esporte são fundamenta­is para a formação da juventude, têm expressiva presença na economia e —não é demais lembrar— desempenha­m papel relevante no que resta do “soft power” do país no exterior, tão maltratado nos últimos anos.

No que tange, em particular, à cultura, a decisão de acomodar a pasta no saco de gatos da Cidadania, sob a supervisão de um ministro estranho ao meio, tem potencial de gerar reações e focos de atritos para o novo governo.

Terra já declarou que em matéria cultural limita-se a tocar berimbau. Caso seja fato, estamos diante de uma proeza elogiável, dadas as peculiarid­ades do instrument­o de origem africana. Se apenas uma tirada jocosa, é de lamentar.

Em qualquer hipótese, melhor levar a sério uma atividade que responde, segundo cálculos governamen­tais, por 4% da renda nacional e é caudatária de tradição secular.

Que Terra tenha a sabedoria de nomear um executivo afeito ao setor que consiga dedicar-se a outros assuntos —e possa, quem sabe, tocar em paz seu berimbau.

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